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A Gestão de risco

Na perspetiva de gestão de risco, estes "ajustamentos” internos e externos, podem conduzir a ineficiências, introduzindo na cadeia de valor da produção, "peças” estranhas e não engrenadas na estratégia e cultura das organizações

A Gestão de risco
"Peça” ou "cabeça” era a designação dada a partir do século XVI até ao séc. XIX a cada um dos indivíduos de um lote de escravos do "infame comércio”1

O negócio de transação e exploração de "peças” foi ao longo deste intenso período de comércio, objeto de regulamentações oficiais várias, a fim de tornar mais eficiente o ciclo produtivo destes "bens transacionáveis” através da diminuição da depreciação da "mercadoria” decorrente das elevadas perdas existentes e consequentes prejuízos para a economia. 

Desta forma, procurava-se conciliar os interesses por vezes não coincidentes entre os vários stakeholders, nomeadamente, os "donos” da mercadoria carentes de "peças” para as suas produções e usos domésticos, os "carregadores” da mercadoria que tinham interesse em que as "peças” chegassem ao seu destino em condições de serem transacionadas ao melhor preço, e os "mestres” das embarcações a quem interessava rentabilizar o frete marítimo com uma sobrecarga de "peças”, traduzida por uma sobrelotação letal a bordo das embarcações de transporte. 

Contudo, estas regulamentações, aliás constantemente desrespeitadas por falta de fiscalização efetiva, pouco contribuíram ao longo dos tempos para um aceitável bom acondicionamento e longevidade das "peças”, quer no decurso do transporte para os mercados de destino, quer durante a sua alocação aos processos produtivos "após entrega”, acarretando elevados custos de substituição e de manutenção, e obrigando a uma mobilização de recursos na necessária vigilância armada por parte dos transportadores e donos das "peças”, a fim de assegurarem o seu conveniente transporte e desempenho e fazerem face às numerosas rebeliões e deserções decorrentes de um sentimento latente de revolta dos escravizados, alimentado pelo desespero da sua situação. 

A partir do início do século XIX, a expansão e desenvolvimento da agricultura e indústria, nomeadamente nos territórios coloniais e das ex-colónias das Américas e a crescente escassez de oferta e consequente encarecimento de mão-de-obra proveniente do "infame comércio”, tiveram como resultado o crescente desenvolvimento de relações de trabalho assalariadas, criando um espaço de concorrência desigual entre os produtores em territórios que passaram a suportar este novo custo de produção, e os produtores que tradicionalmente continuavam a dispor de acesso marginal a mão-de-obra escrava barata. 

Esta situação veio a dar sustento aos argumentos dos abolicionistas religiosos e laicos, que a par de considerarem o comércio de escravos um crime, defendiam que a sua erradicação seria vantajosa para a economia dos países, uma vez que, alegadamente, o "trabalho livre” seria mais produtivo e porventura mais barato que o "trabalho servil”, levando o Parlamento Inglês a aprovar o Aberdeen Act, que concedia à Marinha Real Britânica poderes de apreensão de qualquer navio envolvido no tráfico de escravos em qualquer parte do mundo, de forma a tornar efetivo o fim da escravatura. 

Outras correntes mais conservadoras com interesses e acesso mais fácil ao "infame comércio”, argumentaram que a "abolição provocaria crise económica, pois a grande lavoura não suportaria o impacto da perda dos braços escravos”. 

Contudo, sem prejuízo destas visões divergentes sobre os benefícios do "trabalho servil” para a economia, segundo teorias mais recentes2, contrariando ideias feitas a este propósito, a "relevância económica da escravatura e do tráfico de escravos não residiu no facto de terem sido centrais no curso do sistema europeu e britânico, mas precisamente na sua marginalidade relativamente às principais correntes de crescimento económico à volta do Atlântico”. Sendo que, face às transformações que iam tendo lugar na Europa do Norte rumo à industrialização, as periferias atlânticas com "interesses económicos em declínio e ameaçados, recorreram à escravatura e ao tráfico de escravos como meios de adiar o colapso iminente”. 

Em tempos modernos recentes, as organizações produtivas sentindo-se ameaçadas pela falta de "competitividade”, na impossibilidade ou na incapacidade de gestão em optarem por outras reengenharias, são remetidas para uma "austeridade” centrada na redução dos custos de trabalho, quer através de "ajustamentos” salariais e da progressiva abolição de employee benefits e de "conquistas sociais” até então consideradas irreversíveis, quer através do recurso ao outsourcing. 

Ora, numa mera perspetiva de gestão de risco, estes "ajustamentos” internos e externos, podem conduzir a ineficiências, introduzindo na cadeia de valor da produção, "peças” estranhas e não engrenadas na estratégia e cultura das organizações, tendo como consequência, perdas de flexibilidade e reação à mudança decorrentes de inovações tecnológicas e de métodos de trabalho, e de falta de motivação na concretização e na concertação de objetivos, assim como acréscimos de custos não inicialmente estimados, quer na vigilância e controlo de desempenho das tarefas externas, quer na sua integração com as atividades internas das organizações. 

Estas ineficiências poderão contribuir, a final, em muitos casos, e contrariamente aos desideratos, para a insustentabilidade e colapso das próprias organizações e para o declínio das economias. 


Por Pedro Castro Caldas, consultor de gestão de risco




1 "Infame comércio”: termo usado pelos movimentos abolicionistas do século XIX para designar o comércio de escravos.
2 Joseph C. Miller "a marginal intitution on the margin of the atlantic system: the Portuguese southern atlantic slave trade in the eighteenth century” ob. citada em Arlindo M. Caldeira : "Escravos e traficantes no Império Português
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