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Existiu a Arca de Noé?

«Vou mandar chuva sobre a Terra, durante quarenta dias e quarenta noites, e exterminarei na superfície da Terra todos os seres que Eu criei.»GENESIS 7:4

Existiu a Arca de Noé?
Existem referências a mais de 270 narrativas do dilúvio em povos e culturas diferentes, coincidindo todas elas com o início das respetivas civilizações. Na tradição judaico-cristã a referência mais conhecida ao dilúvio é a da Arca de Noé, uma arca para a preservação da vida na Terra na qual o justo Noé acolheu um casal de cada espécie animal, assim como a ele e a sua família, tendo Deus exercido julgamento sobre os antediluvianos (povo de ações perversas), inundando toda a Terra com uma chuva que duraria quarenta dias e quarenta noites em que «pereceu toda carne que se movia sobre a terra... tudo o que tinha fôlego de vida em suas narinas, tudo o que havia em terra seca, morreu.» (v. 21-22). «Ficou somente Noé e os que com ele estavam na arca.» (Gn 7,17-24). 

A par destas referências mitológicas de punição redentora dos povos através de acontecimentos climáticos extremos, é reconhecido cientificamente que o clima da Terra variou ao longo dos tempos. Na última época glaciar, há cerca de 20.000 anos, a temperatura média global da atmosfera à superfície era de cerca de 5ºC a 7ºC inferior à dos nossos dias e o nível do mar 100 a 120 m abaixo do atual. Há cerca de 8.000 anos ocorreu um período quente, em que o atual deserto do Saara estava coberto por savanas. Mais tarde, na Idade Média, um novo período quente, seguido da "pequena idade do gelo”, terá contribuído nomeadamente para os Vikings serem forçados a abandonar a Gronelândia. 

Nos últimos 8.000 anos até aos nossos dias, o planeta Terra atravessa um período interglaciar caracterizado como um "longo Verão”, em que o clima se apresenta estável, o que terá contribuído para o desenvolvimento das várias civilizações atuais. Contudo desde o início do séc. XX, a temperatura média global vem aumentando de forma anormal tanto no valor como na rapidez, existindo uma incerteza na quantificação da contribuição humana para este aquecimento global, nomeadamente devido às emissões de gases com efeitos de estufa (GEE). 

Muito recentemente uma intensa onda de calor na Rússia provocou enormes incêndios enquanto chuvas intensas no Paquistão causaram inundações sem precedentes. Podem estes acontecimentos extremos ser atribuíveis a um padrão comum de circulação atmosférica e serem potenciados pelo aquecimento global em curso? Talvez, admitem cientistas citados pelo The Economist. 

Através de simulações, os atuais modelos climáticos permitem projetar cenários do clima futuro, de forma a avaliar o grau de vulnerabilidade às alterações climáticas das várias regiões do Globo e respetivo impacto nos atuais sistemas naturais e sociais, em função das localizações geográficas e condições económicas e ambientais em que se inserem. 

Em África, na dependência de uma agricultura incipiente, a vulnerabilidade resultante da progressiva diminuição de precipitação e do avanço dos desertos, prevê-se elevada. Na Ásia a subida do nível do mar e a maior frequência de ciclones irão afetar e deslocar populações das zonas costeiras baixas tropicais densamente povoadas. Na América do Sul, tal como noutras regiões, a maior frequência de cheias e secas e o recuo dos glaciares terão um impacto negativo sobre os recursos hídricos, a agricultura e a biodiversidade. Na América do Norte, devido sobretudo à maior capacidade de adaptação, a vulnerabilidade é mais reduzida, podendo inclusivamente tornarem-se produtivas para a agricultura algumas regiões do norte do Canadá. 

Na Europa, as regiões do Sul apresentam-se mais vulneráveis, com diminuição de precipitação e períodos de seca e perda acentuada de biodiversidade. Na Península Ibérica a precipitação anual poderá ser 40% inferior à atual e os Verões poderão atingir temperaturas 6ºC mais elevados no decurso do século. Em contrapartida, os países do Norte da Europa, conforme tendência já observada nos últimos anos, deverão registar níveis mais elevados de precipitação. 

A par destas alterações, em todo mundo e em particular na Europa, à semelhança de acontecimentos recentes, prevê-se uma maior frequência de fenómenos climáticos extremos, que virão a ter um impacto crescente na economia, em resultado do aumento de frequência dos desastres naturais decorrentes de cheias e tempestades, e de incêndios e afetação da saúde humana resultante de ondas de calor e doenças com origem na má qualidade da água e dos alimentos e na poluição atmosférica.

Como resposta a estes cenários extremos, tornam-se de particular relevância as medidas de mitigação e adaptação adotadas no âmbito das profícuas disposições da UE e das convenções internacionais. Neste âmbito, para além das medidas para diminuição de emissões de GEE, no caso específico das inundações, releva-se a necessidade de mitigar o contributo negativo de determinadas atividades humanas para o aumento da probabilidade de ocorrência de cheias e do respetivo impacto catastrófico, resultantes do aumento das construções nas planícies aluviais e a redução da retenção natural da água devido à utilização e impermeabilização dos solos. 

Reconhecem assim os legisladores e reguladores, ser possível e desejável reduzir os riscos associados às alterações climáticas e em particular às inundações, de consequências nefastas para a saúde e a vida humanas, o ambiente e o património, através da coordenação de medidas à escala regional e dos Estados, através da gestão integrada das bacias hidrográficas, de forma a gerir, de forma solidária, os riscos de inundações. 

Tem sido essa uma das preocupações dos seguradores e resseguradores de, em colaboração com as autoridades, promoverem a avaliação do risco, de onde se destaca a necessidade da elaboração de cartas de risco de inundações quer de origem fluvial quer de origem marítima, necessárias à respetiva gestão e transferência do risco, destacando-se a necessidade de reordenamento regional e local das zonas inundáveis e a promoção de melhores códigos de construção. 

Fica a dúvida se nos tempos ancestrais Noé construiu a "Arca”, assegurando a sobrevivência dos humanos e das espécies, ou se se trata de uma alegoria bíblica da salvação dos justos. 

Resta saber se as atuais gerações serão capazes de construir e gerir o seu futuro com os pés assentes na terra, sabendo construir as suas "arcas” com iguais desígnios redentores das "ações perversas” da intervenção humana. Na convicção de que, se o fizerem de forma adequada e metódica, existem e existirão soluções sustentáveis de contingência e de transferência quantificada e avaliada de risco.


Por Pedro Castro Caldas, consultor de gestão de risco

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