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Inovar com respeito pela tradição

Riscos gastronómicos

Rui Paula
Rui Paula sabe como ninguém que "as casas devem ser construídas pelos alicerces”. E ele, que já construiu várias (Cêpa torta, DOC e DOP), tem sempre presente que este "é um trabalho sério” e que os riscos devem ser calculados. Porque a reputação de um restaurante faz-se ao longo dos anos, com "muito espírito de sacrifício, amor e paixão”, nada pode ser deixado ao acaso, "nada pode ir para a mesa do cliente sem ter sido devidamente provado”.

O Chef, que diz ter aprendido "tudo com a vida”, garante que o importante é "fazer as coisas com muita honestidade”, mas também delegando e constituindo boas equipas. Mas, apesar do sucesso não toma nada por garantido e sabe que nunca poderá deixar de estar atento às preferências dos seus clientes. Até porque considera que o maior risco da sua profissão é que, "de um momento para o outro”, a sua comida deixe de "ser saborosa”.


Nos últimos anos ganhou uma visibilidade assinalável junto do grande público, tornando-se portanto numa figura pública. Como encara essa transformação? 
Atribuo-a a um trabalho consistente. Começámos no Cêpa Torta, em 1994, que era um restaurante pequeno, num lugarejo pequeno, que era Alijó. Durante 13 anos fiz só comida tradicional. A parte mais mediática começou quando abri o DOC, em 2007, na Folgosa, quando o restaurante conseguiu ser reconhecido em todo o país, inclusive lá fora, algo raramente alcançável no ano de estreia. Entretanto, resolvemos apostar na marca Rui Paula, ou seja, no meu conceito. 


Mas como explica essa afirmação meteórica do DOC?
Principalmente porque foi um trabalho muito sério e as casas devem ser construídas pelos alicerces. E os nossos alicerces não foram um fenómeno de moda. Apesar das várias ações de marketing que fizemos, a verdade é que as pessoas que nos visitavam diziam que o DOC não era um restaurante de moda, que a comida tinha um conceito próprio, os vinhos eram servidos a temperatura certa, o serviço era ótimo, etc. Ou seja, reuniu-se um conjunto de fatores muito positivos que permitiram a abertura das portas do DOP, no Porto, em 2010.
É importante ter um restaurante associado a um Chef, mas também é importante fazer as coisas com muita honestidade. E esse é o nosso caso. Se analisar com cuidado, todos os melhores restaurantes do Mundo são aqueles em que os Chefs também são os seus donos. 


Como se vence o duplo desafio de bem gerir uma cozinha e um restaurante/empresa?
Dá muito trabalho, confesso, mas o trabalho é algo que nunca me meteu medo. O que temos de distinguir é o seguinte: se eu pretendo ter três, cinco ou seis restaurantes, todos têm de ter o meu conceito. Isso é que não pode falhar! 


Como consegue manter a qualidade dos seus restaurantes e da sua marca?
É simples: formando equipas. Mas as equipas formam-se de uma maneira muito difícil, não é qualquer pessoa que sabe formar equipas. Neste momento somos 50 pessoas a trabalhar, mas todas elas geridas e formadas por nós. Não posso ter uma pessoa durante um, três, seis meses e depois mandá-la embora. Temos uma preocupação muito grande na formação e a nossa aposta é manter as pessoas associadas ao nosso projeto. 


O que depreendo pelas suas palavras é que não é um chef centralizador, dá abertura às equipas?
Sim, embora todas elas sejam controladas por mim. Hoje sou Chef do DOP, Chef do DOC, Chef consultor do Hotel Vidago Palace. Aliás, aceitei esta consultoria porque tenho lá pessoas minhas, caso contrário não aceitava. As pessoas que estão no Hotel Vidago Palace já trabalham comigo há quatro anos. E são elas que vão formar os restantes que estão a trabalhar lá. Temos de formar o nosso conceito e isso tem de ser algo muito rigoroso.
A formação é fundamental. Outros dos nossos segredos é que gostamos de trabalhar com uma faixa etária entre os 19 e 24 anos. Há de facto três ou quatro pessoas com uma idade superior, mas o resto é tudo camada jovem, sem vícios, mais aberta a receber informação, mais fácil de moldar. 


Como se constrói a reputação de um restaurante? E de um chef? Quais os fatores em que se baseia essa reputação? Correu muitos riscos na criação desta reputação?
A reputação de um restaurante constrói-se de uma maneira muito simples: com muito espírito de sacrifício, amor e paixão. Trabalhamos muitas, muitas horas. O nosso projeto, por exemplo, não tem turnos. Entramos de manhã e saímos quando saímos. Evidentemente, por esta dedicação, tenho de pagar ordenados acima do que é habitual no meio. Em Portugal temos de dominar toda a cozinha tradicional e isso constrói-se com muitos anos.
Não acredito em nenhum chefe que aparece aí e já está. Isso é mentira, um fenómeno de moda. Se um Chef não dominar todos os sabores tradicionais do seu país e não souber quais são os bons produtos da sua gastronomia não vai conseguir elaborar nada. Não se cozinha por tabelas, isso não existe, cozinha-se com alma, com paixão, com memória gustativa, que é, talvez, das nossas principais fontes de inspiração. 


Olhando para o passado, qual o maior risco que correu na sua carreira?
Talvez o meu maior risco, embora calculado, tenha sido abrir o DOP, no Porto. Se o DOC tinha sido um caso de sucesso, no Porto já havia uma série de restaurantes. Foi também um risco muito caro, só em formação gastei mais de 200 mil euros. Todos trabalharam no DOC durante um ano e meio, foi um ano e meio sem faturar nada, já que tinha de pagar salários, almoços, jantares... Mas quando abrimos o DOP parecia que o restaurante já estava aberto há vários anos. Sabia que não podia falhar. Se no primeiro dia não correspondesse ao que as pessoas estavam à espera, e houve muita expectativa ao redor do DOP, eu hoje estaria cheio de problemas. 


Quais os fatores/situações que podem pôr em causa a sua reputação?
Acho que o principal risco é de um momento para o outro a minha comida não ser saborosa, a minha comida não ser boa. Acima destes posso ser assaltado, um incêndio, a equipa estar toda chateada comigo e ir embora. Mas são coisas para as quais temos de estar preparados e devemos saber adaptarmo-nos a qualquer situação. Mas o meu maior medo é realmente que as pessoas deixem de apreciar a minha comida. Por isso, tenho de estar sempre atento, tenho de comer muito, em muitos sítios do Mundo, tenho de estar sempre a par do que está a dar, analisar como o mercado está. Mas sem nunca perder o meu conceito. 


Quando se fala em risco aliado à atividade de um restaurante pensa-se no risco reputacional e, eventualmente, no risco de assaltos ou incêndios, como já referiu. Mas haverá certamente outros que escapam a quem não está na profissão. Pode referir alguns?
Dar comida estragada às pessoas sem que nos apercebamos. Este é um risco muito, muito grande. E por isso a formação é importante: nada, mas mesmo nada pode ir para a mesa do cliente sem ter sido devidamente provado. Absolutamente nada! Não se pode cozinhar sem provar. Eu e todos! Esta é uma regra fundamental. O que há de pior numa cozinha é verificarmos que as pessoas não provam o que estão a elaborar. Temos de estar sempre com uma colher nas mãos. Mas antes disso deve haver regras de higiene e manutenção do produto muito fortes. 


Uma noite de azar é suficiente para acabar de vez com o nome de um restaurante?
Pode acontecer, se for uma coisa muito grave. Ainda mais num país como o nosso. Portugal é muito pequenino, as coisas espalham-se com uma enorme rapidez. Se o boca-a-boca é uma forma de consolidar o sucesso, também funciona ao contrário. Se uma pessoa gostar do meu restaurante fala a cinco, seis pessoas. Mas se acontecer algo de mal, fala a mil... 


Na sua atividade também se pode falar em correr riscos sempre que cria ou sempre que decide romper com as tradições e inovar. Gosta de correr riscos na cozinha? Tem aquilo a que, na gestão de risco, se chama risk appetite?
Gosto de correr riscos mas, ao mesmo tempo, gosto que, quando as coisas vão para a mesa, estejam como eu acho que devem estar. Ou seja, quando vai para a mesa 80% já está garantido, 20% é entregue à apreciação do cliente. E, mesmo assim, às vezes mudamos quando os clientes não falam daquele prato com tanta paixão e força. Trabalhamos para os clientes, são eles que garantem a nossa subsistência. Eles é que mandam na nossa casa. Nós temos o nosso conceito, não temos de fugir dele, mas temos de estar sempre atentos ao que os clientes mais gostam. 


Em termos de paladar, onde é que o português aprecia mais a comida? No norte ou no sul? 
Em termos de paladar apreciam mais no Norte. Talvez no Sul apreciem mais a inovação, a apresentação. Mas isso não significa que não apreciem no Sul. Estou a falar em termos genéricos. A verdade é que se cozinha melhor no Norte. 


De uma forma geral é um homem que gosta de arriscar? Como tem sido o seu percurso profissional? Como tem procurado diversificar os seus negócios?
Gosto. Neste momento estou a pensar tomar um risco grande, mas ainda está no segredo dos deuses.


Para além de reinterpretar a cozinha tradicional portuguesa, existe um desejo de arriscar e experimentar outro tipo/estilo de cozinha (ex. comida italiana, asiática, etc.)?
Sim, já temos pratos que não têm nada a ver com a nossa cozinha, mas o sabor é nosso. Seja em que prato for, tenho de tentar dar o nosso sabor, encontrar o nosso paladar, mesmo que seja num apontamento. O nosso tem de estar no prato. O que é interessante é as pessoas comerem e conseguirem descobrir a nossa gastronomia. É isso que me faz diferente. 


O vinho é algo essencial numa refeição?
Só não é essencial para aqueles que não querem dizer. Não há outra resposta. Uma má harmonização entre um vinho e um prato estraga o vinho e estraga o prato. Não podemos ser radicais e se uma pessoa não bebe não há nada a fazer, embora não deva acompanhar uma refeição com leite, como já vi. Mas a partir do momento que entra o vinho, ele deve harmonizar a refeição. E garanto que o vinho ajuda a que refeição seja melhor. 


Onde há um maior risco: na cozinha ou na sala de refeições?
Nos dois lados. O que está a acontecer em Portugal é algo muito triste. Hoje, toda a gente quer ser Chef de cozinha e não devia ser assim. Como toda a gente quer ser Chef de cozinha não se vê brio na função de empregado de sala. Posso garantir-lhe que nenhum restaurante, mesmo com a melhor comida do mundo, se conseguirá impor se tiver um mau serviço de vinho e serviço de sala.
É tão importante a comida como o serviço. E a culpa é das escolas de hotelaria é que não estão a incentivar os miúdos para essa área. Mas a sociedade também tem culpa, já que considera que estar na sala é servir e servir é ser subserviente. E nós Chefs também temos a nossa responsabilidade; as pessoas de sala têm de ser motivadas.


Mas tem consciência de que um dos nossos maiores problemas é precisamente o serviço de sala?
Inquestionavelmente. Somos uma vergonha! Temos de tratar o cliente com simpatia, com profissionalismo, com calma, com alegria. É isso que se pretende do serviço de sala. E isso só se altera com formação e motivação. Se os miúdos querem ser todos Chefs de cozinha e não de sala é sinal de que estamos a dar mais valor ao Chef de cozinha. Mas o mais grave é que os miúdos querem ser Chef de cozinha quando não dominam nada. Querem começar as casas pelos telhados. Devem pensar que ser Chef é «Olha, agora vou ser Chef!». Isso não é assim! Nem cá nem em lado nenhum.
Mas há mais: um Chef não é só cozinhar. Um Chef, hoje em dia, deve cozinhar bem, deve mandar fazer o prato e fazer bons pratos, deve dominar a sua equipa, ser um líder, um bom gestor, bom relações públicas. E isso não se aprende em um, dois, três anos. 


Qual foi a sua formação? 
Aprendi tudo com a vida. Claro que fiz muitos estágios internacionais, foi preciso fazer, foi preciso ir. Tinha o primeiro ano de marketing, tinha cultura suficiente para entender as coisas. O que me faltava? Trabalhar e ver as técnicas. Foi o que fiz! Ia para as cozinhas, passava temporadas e regressava à minha. Foi assim que escolhi. Mas também nunca trabalhei para outros. Abri o meu primeiro negócio com 25 anos, o Cêpa Torta. 


Já se deparou com alguma situação de crise? Como a resolveu?
Nunca tive nenhuma situação de crise, graças a Deus. Um mês mais ou menos fraco, só isso. Não me posso queixar de nada, mesmo neste momento atual de crise. 


Deseja abrir um restaurante em Lisboa?
Não digo que um dia não possa abrir, mas tem de ter o conceito Rui Paula. Mas gosto de provar que as coisas funcionam no Norte. Nasci aqui, as minhas raízes são daqui. Se os meus negócios crescem no Norte, não me tenho de preocupar em ir para Lisboa. Não coloco essa hipótese de lado, mas também não coloco de lado abrir um restaurante em qualquer parte do Mundo. Mas, na minha opinião, tenho de preocupar-me com o ambiente em que cresci. É uma frustração se não singrar no ambiente em que cresci. E, até agora, tenho provado que é possível.
Houve Chefs que não singraram e tiveram que ir para Lisboa. Eu, felizmente, não. Por outras palavras, não preciso de ir para Lisboa para ganhar dinheiro e para manter 50 pessoas empregadas. E duvido que haja em Lisboa, mesmo com um mercado maior, alguém a pagar ordenados fixos a 50 pessoas.
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