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Na era da Pós‑verdade

"Contra esta corrente dominante da glorificação da mentira da era da pós‑verdade, resta assim um caminho estreito para lidar com o risco fazendo uso da razão"

Na era da Pós‑verdade
Na Roma antiga «pão e circo» era a política usada pelo establishment ao criar nas arenas cenários da «vida real» de sangrentos combates alegóricos a campos de batalha e a cenas de violência imaginadas do quotidiano de confronto desigual de humanos contra outros humanos, ou de humanos contra feras, de que usualmente resultava a morte dos antagonistas mais fracos, para gáudio da plebe, a quem era distribuído pão durante os espetáculos a fim de garantir as afluências e as audiências aos espetáculos circenses, mantendo às massas a ilusão que detinham o poder ao decidirem sobre a sobrevivência dos vencidos nos combates, gritando «perdoa‑o» para os que consideravam serem os merecedores de viverem, ou «degola‑o» em caso contrário, competindo ao imperador acatar o desejo da plebe erguendo ou invertendo o polegar, dando dessa forma cumprimento ao «veredicto popular».

Enquanto prosseguiam em Roma estes grotescos e degenerados «divertimentos» circenses, que no seu auge chegaram a ocupar mais de um terço dos dias do calendário romano, e que ao longo do tempo foram sendo progressivamente afastados da sua ética fundacional de eventos de atletismo e de representação de peças de teatro recolhidos da tradição grega, na «vida real» os bárbaros assolavam as fronteiras do Império, que na falta de quem nele acreditasse e o defendesse, reza a história, começou por fragmentar‑se e acabou ruindo.

Sobreviveu ao Império de Roma, a oriente, a monarquia teocrática de Bizâncio, que pela sua própria natureza de pretenso conúbio com Deus, deslocou a criação de cenários da «vida real» para a criação de cenários da «vida celestial», encontrando‑se os teocráticos bizantinos reinantes envolvidos numa acesa discussão sobre qual seria o sexo dos anjos, no preciso momento em que na «vida real» os turcos otomanos tomavam de assalto as até então inexpugnáveis muralhas de Constantinopla motivados para de seguida, num cenário igualmente real, procederem ao saque e à chacina dos seus habitantes.

Seguir‑se‑ia o renascimento e a idade da razão e do século das luzes, em que o iluminismo representou o superar da incapacidade dos seres humanos em fazer uso da própria razão, independentemente da direção de outrem.

Já no século XX, em resultado do progresso civilizacional alcançado, obtido em parte da aprendizagem resultante dos erros cometidos no passado recente, que originaram a hecatombe de duas guerras mundiais e a proliferação de múltiplas guerras regionais, cujo desencadear foi em muitos casos baseado em falsas motivações, seria porventura de esperar que a humanidade enveredasse pelo império da razão e não caminhasse no sentido oposto de cultivo de formas de irracionalismo que muitos caracterizam como a era da pós‑verdade1

Como antecedentes próximos deste «novo mundo» fantasista emergente, surgiu a ideia de criar cenários de «vida real», comparáveis aos da antiguidade, para gáudio da «plebe», sob a forma dos designados reality shows cujos antecedentes remontam aos anos 70 do século XX ao primeiro reality show «An American Familly», produzido pela rede de TV Americana PSB onde o público era convidado a acompanhar e ajuizar sobre o dia-a-dia de uma família americana em episódios em direto.

A partir daí, este programa inspirou em catadupa dezenas de outros programas de crescentes audiências, baseados em pretensas «vidas reais» em espaços televisivos em que os personagens são apresentados fora de enredos ficcionais em «diversos formatos ou subgéneros, caracterizados por incidir a sua atenção na banalidade do quotidiano através do relato, na primeira pessoa, das tensões, conflitos e angústias que o indivíduo experiencia diariamente, na sua vida profissional, pessoal ou familiar»2 e em que a «plebe» é incentivada a intervir quer o «degolo» ou no «perdão» dos «vencidos», quer na glória dos «vencedores», sob o beneplácito de «moderadores» encartados pelos impérios das televisões, que munidos de um guião, em prol da manutenção e conquista de audiências, doseiam a distribuição do «pão e circo» à «plebe» «erguendo ou invertendo os seus polegares» na condenação ou salvação dos participantes nos reallity shows, a par disso distribuindo abundantemente «pão» aos intervenientes nas ficções, sob a forma de prémios, fazendo‑lhes querer ilusoriamente que se movimentam na «vida real». 

Chegaram entretanto as «redes sociais», o Twitter e os Trending Topics3 e demais artefactos virtuais apresentados como úteis ferramentas de acesso universal ao conhecimento e à informação, democraticamente ao dispor de qualquer utilizador tornado simultaneamente espectador e personagem das ficções criadas, que muitas vezes a coberto do anonimato, conta vivencias, expressa opiniões e gera emoções, que rapidamente passam a ser notícia e tema de debates em areópagos alargados, notícias que por muito repetidas transformam mentiras em verdades, moldando opiniões, criando certezas, ampliando reações, e a final influenciando a maré da história. 

Neste mundo perigoso de afirmação da verdade e do seu contrário, em que, recorrendo à conhecida alegoria do efeito da borboleta de Lorenz, o bater de asas de uma borboleta numa parte do mundo pode causar um tufão no outro lado do planeta, podem pequenos e impensáveis eventos por vezes criados por indivíduos incapazes de fazer uso da razão, ou fazendo da sua razão a razão dos outros, estarem na origem de grandes e imprevisíveis consequências na vida das pessoas, dos grupos sociais e das nações, ameaçando a viabilidade e o futuro de uma organização ou no limite o modo de vida e a própria sobrevivência das gerações vindouras.  

Contra esta corrente dominante da glorificação da mentira da era da pós‑verdade, resta assim um caminho estreito para lidar com o risco fazendo uso da razão, mantendo a capacidade e a sensatez de uma correta e objetiva identificação, análise e eliminação ou mitigação, dos perigos, e de avaliação dos conseguintes riscos da "vida real”, sob pena dos cenários criados baseados em pressupostos e dados falsos, originarem perigos inquantificáveis ou erradamente quantificados e por conseguinte de consequências imprevisíveis, dando lugar a outras duras realidades de «vida real». 


Por Pedro Castro Caldas, consultor de gestão de risco





‘Post‑truth’ traduzido em português para ‘pós‑verdade’, foi o adjetivo, surgido no contexto do ‘Brexit’ e da eleição de Donald Trump, escolhido como a palavra do ano para 2016 pelo dicionário britânico Oxford definido como uma circunstância «em que os factos objectivos influenciam menos a formação da opinião pública do que os apelos à emoção e a crença pessoal».
Cf. MATEUS, Samuel - Reality-Show: uma análise de género. Revista Comunicando, n.º 1, 2012, pp. 235-244. ISSN 2182-4037.
Os Trending Topics ou Assuntos do Momento para quem não saiba são uma lista em tempo real das frases mais publicadas no Twitter pelo mundo todo.

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