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O Gatilho

Para uma correta estratégia de tomada de decisão, as organizações devem identificar e avaliar de antemão quem em cada altura e lugar estará disponível para "premir o gatilho”, e quais são as suas verdadeiras motivações

O Gatilho
Há cem anos, numa manhã de Verão em Serajevo, um jovem de dezanove anos sacou de um revólver do bolso e disparou os dois primeiros tiros da Primeira Guerra Mundial, marcando o início da história moderna.1

Conforme reza a História, por sorte ou acaso, o arquiduque Francisco Fernando, herdeiro do Império Austro-húngaro escapara incólume à primeira tentativa de assassinato do dia, quando uma granada arremessada resvalou na capota da limusina real vindo a explodir sob o veículo seguinte da comitiva, ferindo os seus ocupantes. 

Negligenciando a exposição de risco em que se encontrava, sem adoptar qualquer plano de contingência, o arquiduque prosseguiu a sua visita oficial a Sarajevo sendo recebido na Câmara Municipal. Terminada a cerimónia de recepção e reiniciado o percurso automóvel, a certa altura o motorista enganou‑se no trajecto, sendo obrigado a imobilizar a viatura e a dar início a uma manobra de marcha atrás precisamente no local onde o estudante Gavrilo Princip, o líder dos conspiradores nesse fatídico dia de Verão, se encontrava à porta de um café. 

Princip, ao ver o arquiduque parado à sua frente a poucos passos de distância, avançou empunhando o seu revólver e disparou. Num golpe de sorte para a concretização dos seus intentos o disparo atingiu mortalmente o arquiduque. O segundo tiro destinado ao Governador da Bósnia atingiu mortalmente a consorte do arquiduque, a duquesa de Hohenberg. 

Nos dias seguintes a estes acontecimentos dramáticos, as autoridades austro-húngaras deram início a uma vaga de repressão, fomentando uma perseguição aos sérvios‑bósnios por grupos de assalto formados por lealistas austríacos, saqueando as suas propriedades em Sarajevo e noutros locais, seguindo-se no clímax criado, após um mês, um ultimato do Governo de Viena à Sérvia exigindo o fim imediato de todas as alegadas atuações servias anti austríacas. 

Apesar da Sérvia ter aceite na generalidade as exigências austríacas, a mãe Rússia, aliada da Sérvia, decretou a mobilização dos seus exércitos, o que levou a Alemanha a enviar um ultimato à Rússia para suspensão da mobilização, declarando a existência de um estado de guerra com a Rússia, decretando e desencadeando por sua vez uma imparável mobilização geral. 

Com a mobilização criada, seguiu‑se um ultimato da Alemanha à neutral Bélgica exigindo o direito de passagem e a declaração de estado de guerra com a França. Na defesa da neutralidade da Bélgica, a Grã-Bretanha considerou‑se em guerra com a Alemanha, e a Áustria-Hungria declarou guerra à Rússia, alastrando a guerra pela Europa, sem que as opiniões públicas e os governos, perplexos com a evolução dos acontecimentos, tenham feito verdadeiros esforços para a evitar. 

De facto, a sensação que fica da hecatombe2 gerada por uma série de decisões insensatas e irrevogáveis de estadistas e diplomatas caprichosos tomadas no conforto das chancelarias, foi que estas decisões foram baseadas em ideias erradas e pré-concebidas sobre as verdadeiras motivações do estudante Gavrilo Princip. 

Mau grado provas evidentes em contrário, as decisões beligerantes então tomadas foram baseadas no erro de que Princip, cujo desígnio era a libertação de todos eslavos do Sul do jugo estrangeiro, atuara exclusivamente em prol da Sérvia ao premir o gatilho do seu revólver de bolso num golpe de sorte acertando em cheio no alvo, após uma primeira tentativa falhada de atingir o mesmo alvo à granada. 

A questão crucial que se levanta em situações equiparáveis de tomada de decisão, é a de evitar o erro acidental ou premeditado na avaliação de risco em situações concretas de identificação das motivações de quem estará disponível e motivado para "lançar a granada” de aviso e persistir em "premir o gatilho”, de forma a prevenir hecatombes quer à escala das nações quer à escala das organizações. 

Para tal avaliação, oportunidades não faltaram nem faltarão. Como há cem anos e posteriormente ao longo do século XX, na atualidade vivem-se igualmente acontecimentos inquietantes. 

Forças separatistas pró-russas apoiadas pela mãe Rússia reivindicam e ocupam militarmente territórios ancestrais da Rússia, atualmente partes integrantes de uma anteriormente promissora Ucrânia independente. Extremistas islâmicos ocupam partes da Síria e do Iraque invocando a refundação de um Estado Islâmico onde outrora imperou o Califado Otomano. Regiões de Estados Europeus reclamam a sua independência dos Estados Centrais a braços com crises prolongadas de crescimento e de gestão de dívidas soberanas. No Oriente, a China e seus vizinhos mantém em aberto disputas territoriais no Mar da China. Em muitas regiões do mundo emergem estados disfuncionais geradores de genocídios e de cleptocracia generalizada. 

Num ambiente de deslocalização fragmentada das empresas globais, todos estes acontecimentos representam potenciais questões de risco geopolítico que pela difícil identificação e previsão tende a ser desconsiderado, dada a dificuldade em se quantificar a instabilidade politica e social. 

Contudo, para assegurarem a sua sobrevivência, sobretudo as empresas com deslocalizações de serviços, de produção e com mercados diversificados de aquisição de matérias-primas e de exportação, têm obrigatoriamente que estar preparadas para enfrentar não só as crises económicas, mas também os choques geopolíticos: identificando os respetivos riscos relevantes para as suas operações, avaliando o impacto que esses riscos possam ter e integrando a análise feita nas estratégias de tomada de decisão. 

Ou seja, ao mais alto nível, para uma correta estratégia de tomada de decisão, as organizações devem identificar e avaliar de antemão quem em cada altura e lugar estará disponível para "premir o gatilho”, e quais são as suas verdadeiras motivações.


Por Pedro Castro Caldas, consultor de gestão de risco


Tim Butcher: título original "The Trigger : Hunting the Assassin Who Brougt the World War”
"A Guerra iniciada com a invasão da Bélgica pela Alemanha, na convicção de uma campanha curta, só viria a parar mais de 51 meses depois, com oito milhões e meio de mortos, vinte milhões de feridos, milhares e milhares de prisioneiros e desaparecidos, só parando com o esgotamento dos recursos, a destruição das cidades, a desolação dos campos e um imenso sofrimento…” (A. Afonso "1914‑1918 Grande Guerra”)
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