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Os caminhos-de-ferro de Bagdad

"É na acertada avaliação das forças e das fraquezas que se constroem as oportunidades e se reduzem as ameaças."

Os caminhos-de-ferro de Bagdad
Na sequência da entente estabelecida entre a Alemanha Imperial e o Império Otomano nos finais do século XIX, início do século XX, e da visita em 1899 do Kaiser Guilherme II ao "Califa dos Crentes” o Sultão Abdul Hamid II, o Deutsche Bank, em apoio de investidores alemães, austríacos, suíços e de outras nacionalidades, participou na criação da Sociedade Imperial Otomana dos Caminhos de Ferro de Bagdad, para ligação de Berlim a Bagdad do então Império Otomano, atravessando o Império Austro-Húngaro, a Roménia, a Bulgária, a Turquia, a Arménia, a Síria e o Iraque, no que o sindicato de investidores que patrocinaram a iniciativa considerava vir a ser uma "grande avenida de comércio”.1

Com este projeto, os alemães pretendiam na prática aceder aos campos de petróleo no Iraque e, através de uma ligação ao porto de Bacora, garantirem um melhor acesso à parte oriental do império colonial alemão, sem estarem sujeitos ao atravessamento do Canal de Suez; e o Império Otomano desejava manter o controlo da Arábia e expandir a sua influência através do Mar Vermelho no Egipto que passara a ser controlado pelos britânicos.
Este projeto, encarado miticamente como um meio de levar o conhecimento e as modernidades tecnológicas e científicas ocidentais ao "berço da civilização”, punha em causa o status quo colonial existente no Médio Oriente, controlado pela Grã‑Bretanha, tornando‑se numa fonte de tensão internacional nos anos imediatamente anteriores à 1ª Guerra Mundial o que, segundo alguns historiadores, poderá ter sido uma das principais causas da sua deflagração, cujo teatro de operações europeu se veio a alargar ao Médio Oriente, levando à queda e à ascensão de novos protagonistas e a novas partilhas territoriais nunca saradas na situação do pós‑guerra.

O estabelecimento de rotas de comunicação acessíveis a transporte de pessoas e bens, iniciadas com os "descobrimentos” portugueses para o Oriente e para o Novo Mundo, como defendem alguns autores, estarão na origem do fenómeno da "globalização” dos nossos dias, como processo de aprofundamento internacional da integração económica, social, cultural e política, assente nos seguintes aspetos básicos: comércio e transações financeiras, movimentos de capital e de investimento, migração e movimento de pessoas e a disseminação de conhecimento. 2

Mesmo que, à data, os desígnios das potências imperiais, ao estabelecerem novas vias de comunicação, fosse o de organizar e perpetuar o domínio colonial, em ambiente de paz, de forma a tornar mais eficiente a exploração dos domínios através da pacificação e submissão dos povos indígenas e do fácil acesso aos respetivos recursos naturais, substituindo assim as ineficientes antigas práticas de organização do comércio desenvolvidas de "forma militar e análoga à da guerra, como uma atividade adicional do pirata e do corsário, da caravana armada, do caçador e do mercador de espada, dos burgueses armados das cidades, dos aventureiros e dos exploradores, dos plantadores e conquistadores, dos apresadores e dos traficantes de escravos…”, é um facto que estes desígnios de eficiência tornaram imparável a "globalização” assente nos aspetos básicos atrás referenciados.

Ora, mau grado os efeitos perniciosos que justamente são atribuídos à "globalização”; resultantes da perda de parte da soberania dos Estados com o surgimento de organizações supragovernamentais fora do controlo democrático e dos próprios Estados, dela resultou os "mais fracos” terem passado a ter acesso facilitado, ao conhecimento através das novas tecnologias de informação e à livre circulação, sem que os "mais fortes”, em o querendo, tenham a possibilidade de o impedir com recurso a novos "muros” cada vez de menor eficácia e de mais difícil aceitação. Duma forma geral a geografia humana das várias regiões e continentes, e em particular da Europa, resulta de uma miscigenação de culturas e de etnias em consequência de invasões e migrações imparáveis ao longo dos séculos.

Sem ser necessário, no caso europeu, retroceder às invasões bárbaras fundadoras de novas Nações nascidas nas ruínas do Império Romano, ou às diásporas resultantes das perseguições religiosas, na história mais recente, os antigos Estados imperiais a par de terem promovido as suas emigrações para o exterior, absorveram no seu interior e no interior dos seus domínios, vagas de imigrações, criando em ambas as situações novas comunidades geradoras de oportunidades de progresso da humanidade baseado na disseminação do conhecimento mútuo dos povos e do comércio associado à paz, sem prejuízo de por vezes eclodirem aqui e ali "ajustamentos” mais ou menos circunscritos e mais ou menos violentos, motivados por antagonismos étnicos e religiosos e de disputa de interesses comerciais e territoriais, resultando em confrontos, perseguições e no limite em genocídios e na guerra. 

Na atualidade, como que em movimento inverso do recente passado colonial, chegam às portas da Europa ondas migratórias geradoras de tensões, que muitos vêem como uma ameaça à paz e à segurança, por ironia da história, no caso dos imigrantes vindos do Médio Oriente, percorrendo cem anos depois o mesmo trajeto que o "caminho‑de‑ferro de Bagdad” com destino a Berlim, que à data, é certo, foi construído com o desígnio unilateral do Reich alemão de acesso às colónias e às matérias primas – o que tanto incomodou o status quo do império britânico que, sentindo‑se ameaçado, levou à guerra − mas também pensado miticamente como um meio de levar o "conhecimento ocidental” ao "berço da civilização”.

Contudo, contrariamente aos que se sentem ameaçados no seu status quo, os mais esclarecidos, em Berlim e noutros lugares, são levados a identificar este trânsito percorrido através dos "novos caminhos‑de‑ferro de Bagdad”, desta feita não como trajeto para envio expedito de colonos e garantir o acesso fácil aos recursos naturais, mas como um processo de retorno facilitador de novas oportunidades de intercâmbio multilateral dos povos; quer através de um possível contributo demográfico e produtivo desta massa humana afluente portadora de esperança e do "conhecimento ocidental”, assim concorrendo para o progresso dos Estados acolhedores; quer no prospetivo fomento das relações culturais e de comércio internacional após o desejável regresso a casa destes imigrantes, num possível futuro de pacificação e reconstrução das zonas de guerra que estiveram na origem dos movimentos migratórios, no pressuposto que o progresso se conquista na capacidade de superação das dificuldades ou dito de outra forma é na acertada avaliação das forças e das fraquezas que se constroem as oportunidades e se reduzem as ameaças.


Por Pedro Castro Caldas, consultor de gestão de risco




Com o mesmo desígnio de acesso expedito aos domínios coloniais, os britânicos projetaram uma linha de caminho‑de‑ferro de ligação do Cabo ao Cairo para unificar as suas possessões africanas, facilitar a governabilidade, permitir que o exército se movesse rapidamente para pontos críticos, ajudando na colonização e incentivando o comércio.
In AL‑RHODAN, Nayef R.F, STOUDMANN, Gérard – Definitions of Globalization: a comprehensive overview and a proposed definition.


Fontes Bibliográficas:
JASTROW, Morris – The War and the Bagdad Railway: the story of Asia Minor and its relation to the present conflict. [S.l]: Lippincott, 1918.
MCMURRAY, Jonathan S. – Distant ties : Germany, the Ottoman empire, and the construction of the Baghdad railway. Westport, Conn.: Praeger, 2001. ISBN
0275970639
POLANYI, Karl – A grande transformacao: as origens políticas e economicas do nosso tempo. Lisboa: Edições 70, 2012. ISBN 978‑972‑44‑1660‑1.
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