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Os Seguros e as Ciências da Vida

Dossier Riscos Emergentes

Os Seguros e as Ciências da Vida
A indústria das Ciências da Vida, também intituladas de Ciências Biológicas, Indústria de Artigos Médicos, Indústria de Artigos para a Saúde, Indústria de Equipamentos Médicos, Indústria de Instrumentos Médicos, Ciências Naturais, Instrumentos Médicos, Indústria de Produtos Médicos, Indústria de Equipamentos para a Saúde – é uma indústria tanto de pequenas empresas, que se dedicam à investigação, como de grandes empresas, muitas delas multinacionais farmacêuticas ou fabricantes de equipamentos.

Embora haja diferenças significativas entre as empresas de I&D — muitas vezes referidas como empresas de biotecnologia — e os fabricantes, todas partilham o mesmo problema básico: uma indústria seguradora que não pode, ou não quer, servir as suas necessidades. Poucos seguradores europeus oferecem soluções de seguros de responsabilidade civil produtos ou ensaios clínicos em seres humanos à indústria das Ciências da Vida.

Ainda há menos oferta se o segurado efetuar vendas ou conduzir ensaios clínicos em seres humanos nos EUA. Alguns seguradores só aceitam garantir ensaios clínicos se a empresa vender produtos cuja entrada no mercado já tenha sido aprovada. Isto tem levado a que algumas das grandes multinacionais farmacêuticas constituam as suas próprias Seguradoras Cativas, o que, em larga medida, ajuda a resolver os seus problemas.

Mas o que acontece às empresas de investigação de menor dimensão? Têm de recorrer ao mercado segurador, sendo esta a sua única opção de transferência de risco. Para além disso, a maior parte dos países do mundo obrigam as empresas a subscrever os seguros de ensaios clínicos no mercado de seguros local. Por outras palavras, os seguros de Ensaios Clínicos em Seres Humanos (ECSH) são obrigatórios.

Como corretor especializado, é-nos difícil compreender o motivo por que a maior parte dos seguradores não garante os ECSH.

Dever-se-á esta atitude à gravidade ou à frequência dos sinistros? Dificilmente. Salvo um caso grave no Reino Unido há alguns anos, os seguradores de ECSH confirmam que tem havido muito poucas reclamações ao longo dos últimos 10 anos. Dever-se-á, então, à incerteza? Talvez, mas devemos ter presente que os ECSH são uma das áreas melhor regulamentadas em termos de legislação e aprovações. Será pela falta de conhecimento?

Pode ser essa a explicação. Segurar os ECSH exige conhecimento e capacidade de compreender a descrição técnica do estudo, o medicamento ou dispositivo a testar, o desenho do estudo e o seu objetivo.

Contudo, o protocolo de investigação oferece tipicamente mais informação sobre o risco aos seguradores que os questionários comummente utilizados noutras áreas de seguros. Desenvolver um ensaio clínico sobre um fármaco — pelo menos no caso de empresa de investigação de reduzida dimensão — implica, muitas vezes, o outsourcing de algumas atividades a terceiros.

As Contract Research Organizations (CRO) oferecem vários serviços, entre eles a desenho do estudo, o desenvolvimento dos protocolos, a identificação e a monitorização de locais e as negociações contratuais. As Contract Manufacturing Organizations (CMO) oferecem serviços de desenvolvimento e fabrico, embalagem, rotulagem e armazenagem de produtos farmacêuticos.

A cooperação com cada um destes organismos externos é regulada por acordos escritos nos quais as partes definem os riscos e exposição que cabem a cada um. A gestão da cadeia de fornecimento e o seguro dos IFA (Ingrediente Farmacêutico Ativo), das substâncias medicinais e dos produtos farmacêuticos tornam-se elementos importantes.

O mercado dos seguros parece compreender estas questões e oferecer proteção adequada contra todos os riscos. Em geral, e pelo menos na Escandinávia, os seguradores não têm problemas em oferecer seguros de responsabilidade às CRO e CMO, já que são consideradas "normais”. Uma CRO é vista como um serviço de consultoria e uma CMO como uma entidade produtora.

No entanto, o que os seguradores parecem ignorar é que a responsabilidade por danos sofridos pelos participantes nos ensaios clínicos pode ser atribuída às CRO ou CMO, dados os seus respetivos papéis. A CRO pode ser responsabilizada por erros e omissões na conceção da pesquisa ou no texto da Declaração de Consentimento Livre e Esclarecido assinada pelo participante.

A CMO pode ter que assumir a responsabilidade por produtos defeituosos testados em seres humanos. Além disso, a empresa de I&D pode precisar de licenciar tecnologias de terceiros e terá de indemnizar o licenciante por reclamações decorrentes do uso dessas tecnologias, quer ocorram durante o período de ensaios, quer posteriormente.

Quando se fornece soluções de cobertura e de gestão de risco à indústria das Ciências da Vida, tudo começa e acaba com a compreensão das obrigações contratuais que os clientes aceitaram. Uma empresa que pretenda conduzir um ensaio clínico num ou mais países é designada "Promotor”. O hospital ou clínica onde se realize o ensaio é designado "Centro de Ensaio” e o médico, que trata diretamente os participantes no estudo é o "Investigador”.

As definições dos vários conceitos usados nos ECSH podem ser encontradas nas diretrizes GCP (Good Clinical Practice – Boas Práticas Clínicas) e na Declaração de Helsínquia (CIH). Estes padrões foram adotados pela UE, EUA e Japão e são usados por todo o mundo como princípios básicos da realização de ensaios clínicos.

Se o promotor for uma empresa de I&D de dimensão reduzida, o mais habitual é esta assinar um contrato de prestação de serviços com uma CRO. Como se disse acima, os serviços das CRO variam, mas é frequente o promotor necessitar de ajuda na conceção do estudo e no desenvolvimento do Protocolo (o Protocolo é um documento no qual se descreve os objetivos, a conceção, a metodologia, os aspetos estatísticos e a organização de um ensaio, incluindo as versões sucessivas e as alterações daquele documento.

Às CRO também se pedirá que identifiquem os Investigadores e organizem a sua participação. O produto farmacêutico a testar será processado por um fabricante aprovado pelas autoridades reguladoras das boas práticas no sector — ou seja, uma CMO. É frequente mais do que uma CMO participar na preparação de determinado fármaco. Uma delas pode fabricar o produto, outra prestar os serviços de embalagem e rotulagem, e ainda outra oferecer serviços de armazenamento.

Se os resultados da investigação se medirem por meio de amostras de sangue ou biopsias, o promotor pode ter de contratar laboratórios independentes ou empresas de gestão de dados. Com cada um destes - os investigadores (Instituições – hospitais/ clínicas); as CRO; as CMO; os licenciantes; o Laboratório; a empresa de Gestão de Dados - o promotor estabelece um contrato que descreve as obrigações e responsabilidades de ambas as partes.

Assim, não é invulgar um promotor ter 5 a 10 contratos com diversas entidades, contratos que terão impacto na cobertura de seguro necessária ao estudo clínico. Os ensaios clínicos são estudos de centro único ou estudos multicêntricos.

Estes últimos podem ser realizados em vários países. Os estudos de Fase I são normalmente estudos de menor dimensão com voluntários saudáveis; os de Fase II e III são estudos com doentes; os de Fase III normalmente contam com um número alargado de doentes. A realização de um ensaio multicêntrico de Fase III pode envolver até 40-50 países e vários milhares de doentes.

No que toca aos seguros, a maior parte dos países exige ao Promotor que contrate uma apólice válida localmente (locally admitted insurance) de acordo com a legislação e língua oficial do país. Uma apólice destas é uma apólice emitida por um segurador autorizado a operar no país em questão. As empresas promotoras podem optar por contratar seguros por países ou por ensaio, ou optar por estabelecer um Programa Internacional, com a subscrição de uma apólice Master e apólices locais.

Em certos países, a legislação regula os capitais por participante/ protocolo/ano que o promotor deve segurar. Noutros, cabe-lhe decidir qual o montante de capital, pelo qual está disposto a pagar. Todas as apólices relacionadas com ECSH são por definição apólices de responsabilidade civil, algumas baseadas em responsabilidade civil objetiva, outras em responsabilidade civil subjetiva. Nalguns países a participação numa pool de seguros para produtos farmacêuticos e ensaios clínicos é obrigatória, sendo voluntária noutros.

O âmbito de cobertura varia de país para país. Alguns países exigem que o promotor subscreva uma apólice que cubra tanto o promotor como os investigadores. Noutros não há qualquer obrigação de segurar, ou há apenas a obrigação de segurar a responsabilidade do promotor.

Embora a Agência Europeia do Medicamento, a EMEA, e a norte-americana FDA (Food and Drug Administration) tenham dado largos passos no sentido de elaborar regras uniformes sobre os ensaios clínicos em seres humanos, segurar estes ensaios ainda é matéria para a legislação local. A gestão e trâmites práticos das apólices de seguro também variam de país para país.

Em certos países, os seguradores exigem o promotor assine a apólice ou o certificado e lhes devolva os originais em papel. Noutros países, o promotor é obrigado a pagar o prémio antes que o certificado e a apólice sejam emitidos.

Todos os ensaios clínicos carecem de aprovação, que o promotor deve procurar junto das autoridades nacionais e/ou comissões de ética, que podem ser nacionais ou regionais. Um pedido de aprovação de ensaio clínico deve incluir: (1) o Protocolo, (2) a Declaração de Consentimento Livre e Esclarecido do Participante, (3) os nomes e moradas dos Investigadores e (4) informação sobre a cobertura de seguro para danos sofridos pelo participante imputáveis ao ensaio. As comissões de ética, em especial, concentram-se nas questões da segurança dos participantes, incluindo as coberturas do seguro contratado.

Um ensaio será aprovado apenas naquelas circunstâncias em que se percecione que os seus benefícios serão muito superiores aos riscos e desconforto incorridos pelos participantes.

O processo de avaliação da candidatura é longo, podendo demorar vários meses. As autoridades sanitárias e/ou as comissões de ética podem solicitar ao promotor que efetue alterações não só na conceção e protocolo do ensaio como também na Declaração de Consentimento Livre e Esclarecido e nas coberturas previstas na apólice.

Podem surgir perguntas e o promotor pode ter de cumprir certas condições antes de obter a aprovação. Alguns países exigem que o promotor traduza o protocolo para a língua local. Um protocolo clínico é, muitas vezes, um documento abrangente, pelo que, no planeamento do ensaio, deverá ser alocado tempo ao trabalho de tradução.

A Declaração de Consentimento Livre e Esclarecido do Participante deve ser sempre traduzida e, no caso dos países que exigem que a apólice de seguro seja emitida por um segurador a apólice de ECSH deve estar traduzida na língua do país. Estabelecer um ensaio clínico multicêntrico em vários países — desde o primeiro esboço do protocolo à primeira seleção de participantes — pode demorar mais de um ano.

Cada protocolo terá um conjunto de critérios de exclusão e/ou inclusão de modo a qualificar ou desqualificar os participantes do ensaio. Estes critérios dependerão do tipo de ensaio, da área de indicação, e de este ser um estudo de Fase I, II ou III. Por exemplo, na área cardiovascular, certos valores de pressão sanguínea podem impedir um doente de participar.

Especialmente na área das doenças designadas fatais, como o cancro, SIDA e a diabetes, pode ser difícil para um Investigador negar a um participante potencial a sua inclusão no ensaio. Para muita gente, os medicamentos experimentais podem ser o último recurso. Todos os ensaios clínicos começam com uma fase de pré-seleção onde os potenciais participantes são testados para determinar a sua viabilidade.

Alguns serão incluídos, outros não. Em ensaios de grande escala, pode ser difícil obter o número predeterminado de participantes, especialmente se o ensaio for atípico. Neste contexto, são necessários elevados padrões éticos por parte dos investigadores para assegurar que a participação dos doentes se faça numa base correta e informada.

Infelizmente, têm surgido casos em que os investigadores aceitam certos desvios do protocolo de modo a recrutar o maior número de participantes para o ensaio, ou casos em que os participantes não compreenderam que faziam parte de um ensaio clínico. Em países do terceiro mundo, onde certas partes da população são analfabetas ou não têm acesso a cuidados médicos mínimos, os promotores e os investigadores têm de ter muito cuidado com os participantes que aceitam.

Assim que a fase de pré-seleção estiver concluída e os participantes tiverem concordado em participar, pode dar-se início ao ensaio clínico. Os ensaios podem ser com participantes em regime de internamento ou em ambulatório.

Durante o ensaio podem ocorrer acontecimentos ou ações adversas. Estes acontecimentos ou reações são, na prática e frequentemente, efeitos secundários conhecidos ou desconhecidos, graves ou não. As diretrizes GCP contêm definições e requisitos segundo os quais tanto o promotor como os investigadores têm de comunicar tais reações adversas às autoridades sanitárias e/ou comissões de ética. Os acontecimentos e as reações adversas graves podem culminar na suspensão ou cessação do ensaio, ou levar a uma alteração na conceção do ensaio e, portanto, a uma mudança do Protocolo.

Todos os aditamentos ou alterações exigem novo procedimento de candidatura e aprovação, exigindo muitas vezes alterações à cobertura da apólice. As mudanças no número de participantes, duração do ensaio, investigadores e/ou documentação do ensaio (sobretudo o Protocolo e a Declaração de Consentimento Livre e Esclarecido do Participante resultarão em alterações à apólice de seguro.

Os acontecimentos e as reações adversas graves porque o medicamento é defeituoso ou por outras circunstâncias pelas quais o promotor e/ou o investigador possam ser responsabilizados. Mesmo que se estabeleça uma relação causal, nem todas as ocorrências relativas às ditas reações levam ao pagamento de compensações ou de indemnizações.

Tal como se disse acima, os seguradores têm registado muito poucas participações ao longo dos últimos 10 anos. Em casos em que o medicamento experimental se destina a doenças fatais ou doenças relacionadas com o SNC (Sistema Nervoso Central), e se os participantes sentirem melhorias na saúde, taxa de sobrevivência ou qualidade de vida, pode ser solicitado ao promotor que continue a fornecer o medicamento após a conclusão do ensaio.

Chama-se a isto Uso Compassivo, que obriga o promotor a contratar um tipo diferente de apólice, normalmente algo entre a responsabilidade civil produtos e de ensaios clínicos. Alguns seguradores consideram o uso compassivo um prolongamento do ensaio clínico e oferecem um extensão da apólice Ensaios Clínicos, ao passo que outros acham que o risco se encontra melhor garantido ao abrigo de uma apólice de responsabilidade civil produtos

Antes do promotor obter uma aprovação de introdução no mercado em certa área geográfica, pode iniciar o fornecimento a participantes nomeados. A diferença entre o uso compassivo e o fornecimento a participantes nomeados é que os participantes na segunda categoria nunca tomaram parte de um ensaio clínico. Embora o promotor esteja a comercializar produtos cuja venda ainda não foi aprovada, terá de segurar o seu risco ao abrigo de um seguro de responsabilidade civil produtos.

Para aconselhar a indústria das Ciências da Vida sobre a gestão de riscos associados aos ensaios clínicos e a forma de definição das coberturas em apólice(s) necessária(s), o pré-requisito mais importante é compreender o processo e a enorme quantidade de documentos, tais como contratos e acordos, protocolos, Declaração de Consentimento Livre e Esclarecido, diretrizes e outros documentos associados a um ensaio clínico.

Os seguros em si tornam-se menos importantes e servem o principal objetivo de salvaguardar o cumprimento de regras e regulamentos. Uma vez que a maior parte das apólices de Ensaios Clínicos no mundo definem uma cobertura de acordo com a legislação local ou as diretrizes aceites pela indústria, a principal tarefa do corretor de seguros é aconselhar o cliente sobre o sistema legal, a legislação e a exposição a riscos específicos de cada país. Outra importante tarefa para o corretor de seguros é agir com celeridade e trabalhar com parceiros conhecedores e experientes.

O tempo é de importância suprema e o planeamento essencial. Se uma CRO, o promotor do ensaio clínico ou o segurador não souberem nada do processo, do que é necessário e como este deve ser gerido, o ensaio nunca arrancará. Como se pode ver pela exposição acima, a complexidade do processo é uma vantagem, pelo menos para o segurador. Os seguradores têm acesso a toda a informação disponível sobre o risco.

Nenhum outro tipo de risco ou responsabilidade é tão bem regulado. Para além disso, os seguros são obrigatórios na maior parte dos países. Os seguradores ganham acesso a:

• Contratos e acordos com as CRO e CMO.

• Contratos e acordos com Instituições e Investigadores.

• Contratos e acordos com Entidades Licenciantes, Laboratórios, Empresas de Gestão de Dados (se se aplicar)

• Protocolos • Declaração de Consentimento Livre e Esclarecido do Participante

• Acontecimentos e Reações Adversas

• Relatórios sobre Dados de Segurança

• Relatórios de Auditoria e Inspeção

• Resultados de ensaios clínicos

E quais são os verdadeiros riscos? Que algo aprovado após inspeção da parte das autoridades sanitárias e comissões de ética dê mau resultado. Sim, é certo, mas basta perguntar aos profissionais do mercado segurador. A maior parte dos seguradores obtém uma boa margem ao segurar ensaios clínicos. Permitam-me concluir este artigo convidando os Seguradores que até agora têm preferido não entrar neste campo a juntar-se ao grupo pequeno, mas muito capaz, daqueles que podem e querem.


Lone Hertz Sócia-Gerente e co-proprietária da Hertz & co. Insurance Brokers, membro da Brokerslink

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