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Quando as notícias escrevem uma página da História

Uma explicação geopolítica dos riscos na nova ordem mundial

Quando as notícias escrevem uma página da História
As testemunhas e os atores desta segunda década do século XXI são atingidos por sentimentos estranhos. O velho mundo parece‑lhes estar inequivocamente morto, ao passo que o novo ainda não nasceu, e ainda não há uma data certa para o seu nascimento.

A interação entre estas duas situações é muitas vezes a principal razão de algum pessimismo, mas também de perguntas, dúvidas, incertezas, receios e de alguma nostalgia, que é compreensível mas também potencialmente perigosa.

Esta não é, de maneira nenhuma, a primeira vez que as gerações que dominaram a segunda metade do século XX enfrentam momentos de rutura de grande relevância entre o passado e o futuro. 

Em 1989 deu‑se a queda do Muro de Berlim, o principal símbolo da Guerra Fria; em 2001, o 11 de setembro, dia em que vimos, de forma trágica, que a História não tinha chegado ao fim.

Em ambos os casos, houve certamente lugares e imagens notáveis, mas também acontecimentos que é possível compreender e interpretar. Desde 2011, todos os países, regiões e continentes parecem mover‑se em simultâneo, sem ligações aparentes. Este movimento (aparentemente) sem sentido, de natureza quase browniana, gera perplexidade e angústia.

Vamos dar aqui, através de uma lente geopolítica, uma pequena contribuição para transformar a ansiedade em compreensão. Partindo do pressuposto que a geopolítica é a combinação da geografia com a História, vamos dar‑lhe uma oportunidade.

A tese que se segue tentará demonstrar, através de alguns exemplos, que, mais do que o mundo estar a mudar radicalmente, são as lentes com que o vemos, as nossas perspetivas geográficas e históricas, que se mantêm estagnadas e anacrónicas e tornam a compreensão difícil ou mesmo impossível.

Tomemos três lugares para análise: Líbia, Síria e Iraque. Estamos em 2016, passaram cinco anos desde o início daquilo que achámos por bem chamar a Primavera Árabe. De que estação do ano nos lembraríamos agora?

Todos os leitores deste artigo, bem como o autor, aprenderam a identificar os nomes dos três países acima, a localiza‑los em mapas de várias cores com nomes que identificam estados delimitados de forma exata. Não há dúvida de que estamos a lidar com países ou até estados. De que legado estamos a falar? 

Vemos as peças de um puzzle fragmentado sobrepostas aos nomes de antigos países em ruínas: no lugar da despedaçada Líbia estão agora a Cirenaica, a Tripolitânia e Fezzan. Entretanto, no Iraque e na Síria, sunitas e xiitas, árabes e curdos (a realidade é muito mais complexa do que esta simplificação) destroçaram, a ferro e fogo, os países que nos habituáramos a ver.

Mas, na realidade, todas estas entidades já existiam muito antes de os nossos mapas terem sido impressos, muito antes de termos aprendido a conceber o mundo com linhas tão bem delineadas. 
Líbia, Síria e Iraque são, de facto, construções voluntárias e recentes, nascidas do desejo de ultrapassar divisões antigas concretizado com a atribuição da independência a aglomerações regionais heterogéneas na primeira metade de século XX.

No que respeita à Líbia, o desejo partiu da Itália, ao passo que os casos da Síria e do Iraque se deveram ao acordo franco‑britanico Sykes‑Picot de 1916 — cujo centenário se celebra este ano, o que deveria levar à respetiva co-memorizacao, ou seja, a memória operativa comum e popular.

Estas realidades antecedem a nossa memória. Muito antes de começarmos a delimitar mapas‑mundi, existiam identidades complexas nos locais que pretendemos simplificar, às vezes com bons motivos, com um verniz de homogeneidade. Mas as antigas identidades mantiveram‑se sob a fina camada da vontade dos homens. Parecia que queríamos esconder todas as fissuras com cal.

Todos concordamos que a História é escrita pelos vencedores. Deveríamos acrescentar que também são os vencedores que desenham os mapas. Mas tal como "o hábito não faz o monge”, tal como "a barba não faz o filósofo”, também um mapa não cria um território, sobretudo quando tenta aglomerar uns e dividir outros. E a identidade perdura; pode ser reanimada a qualquer momento.

E é o que está a acontecer perante os nossos olhos. Confundimos maquilhagem com pele, aparências construídas com realidades antigas. Esta incrível ilusão leva‑nos a confundir mapas com territórios.

A minha hipótese de partida é a seguinte: aprendemos a ver o mundo através dos mapas mais recentes, enquanto a compreensão real do problema exige que conheçamos a composição dos antigos territórios.
Toldados pela nossa habituação a espaços de curta duração, ficamos estupefactos com o ressurgimento de realidades de longa duração. As situações invertem‑se em toda a parte e nada fica como dantes.

É possível encontrar mais exemplos daquilo a que poderíamos chamar a vingança dos territórios sobre os mapas?

Os exemplos são incontáveis, uma vez que o processo está em curso por todo o mundo. Todos podemos descobri‑lo ao nosso redor.

Vemos em África o reaparecimento de divisões entre povos nómadas e sedentários, habitantes antigos e recém-chegados, agricultores e criadores de gado, cristãos animistas e muçulmanos animistas. E alguns países recentemente desenhados no atlas já se fraturaram. Irão sobreviver?

Também na Europa, as linhas de fratura, escondidas da vista pela cosmética artificial dos mapas, estão a reabrir‑se: vemos na divisão da Ucrânia, que não é, em si mesma, senão um agregado construído a partir de 1945, as divisões que vieram à tona durante o cisma de 1054 entre as Igrejas Cristãs do Oriente e do Ocidente, e que sempre se mantiveram vivas, como atesta a reunião entre o Papa Francisco e Kirill, em fevereiro de 2016.

Esta linha atravessou também a Crimeia, que só se separou da Rússia em 1954. Aqueles que só viram o mapa editado não estão cientes das circunstâncias. E esta situação é ainda mais grave para aqueles que viram apenas mapas criados depois de 1991. Conheceram um mundo sem referências cartográficas à URSS.
Tal como o sinal de "tinta fresca” indica que é melhor não nos aproximarmos, deveríamos ser igualmente cautelosos em relação aos "mapas recentes”.

Não temos aqui espaço suficiente para muitos outros exemplos. Vamos argumentar com apenas alguns para sublinhar quão problemático e sistemático é o atual contra‑ataque que os territórios estão a fazer aos mapas. Os ortodoxos gregos parecem estar a afastar‑se da União Europeia e a aproximar‑se da Rússia. 

Não existe nenhuma ambiguidade neste caso: a influência advém em primeiro lugar não de crenças ou práticas religiosas, mas, acima de tudo, de um tropismo cultural, que engloba crentes, não crentes e infiéis.


Desde o início de 2016, temos vindo a assistir a um projeto de Atenas para que a Grécia deixe de ser signatária do acordo de Schengen, o que alinharia o país com a Roménia e a Bulgária, que estão fora do espaço Schengen, recriando a linha divisória entre o Império Romano Oriental e Ocidental, que remonta ao século IV d. C.

No que respeita aos movimentos independentistas na Escócia e na Flandres, saliente‑se que se trata de territórios que não estavam incorporados no Império Romano, regiões habitadas por povos que eram considerados bárbaros. Parece que o passado não passa.

Deixemos os exemplos por aqui. Não duvidemos de que é possível encontrar no contexto geográfico de cada um exemplos de processos deste tipo. No mundo chinês, a unidade não elimina as divisões entre Pequim e Xangai nem as particularidades identitárias dos Han e de outros povos. No Vietname verifica‑se a presença e o ressurgimento de especificidades entre Tonquim, Aname, e Cochinchina.

Muitas pessoas mais qualificadas do que eu podem demonstrar que a Índia continua a ser muito diversa enquanto país único. Nos próprios Estados Unidos, podemos estar certos de que as divisões da Guerra Civil foram esquecidas? Uma querela recente sobre bandeiras dá-nos motivos para duvidarmos desta presunção.
É claro que admitimos que existem muitos exemplos do contrário. Não estamos a propor uma teoria absoluta, mas uma lente para usar, como chave com a qual não pretendemos abrir todas as portas.

No entanto, através destes exemplos, os leitores podem tirar várias lições e construir perspetivas e reflexões mais informadas sobre os riscos do mundo. Nós propomos duas: 

• A vingança dos territórios sobre os mapas, dos longos períodos de tempo sobre os períodos curtos, traz conflitos violentos que acompanham afirmações de identidade, que ressurgem de forma mais forte devido ao fato de terem sido previamente enterrados, como se do retorno dos reprimidos se tratasse. Estes conflitos desestabilizam os poderes estabelecidos, que abominam ceder os privilégios que detêm. Embora cíclicas, as décadas servem de parênteses da História. É preciso explicar: a intensificação das tensões leva sempre a um aumento do risco e obriga a uma investigação mais ampla. 

• Uma segunda lição: a hipótese proposta mostra o perigo de confundir períodos curtos com períodos longos — a duração das nossas vidas, a extensão da nossa memória e o tempo da História. É arriscado considerar que um vulcão está extinto só porque parece adormecido há muito tempo. É o mesmo erro que leva alguns a recusar vacinas, nunca tendo experienciado uma epidemia. Um especialista em gestão de risco deve, pois, ter uma memória que ultrapasse largamente a sua data de nascimento.

Cuidado, muito cuidado com os amnésicos! 


Por Alain Simon, Managing Director do Phileas Consulting Group

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