Global Risk Perspectives - Monthly insights on geopolitics, trade & climate

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Bernardo Pires de Lima
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28.10.2021

A queda de Cabul

Vivemos tempos de análises hiperbólicas, quando não apocalípticas. A queda de Cabul às mãos dos talibans, um dos acontecimentos mais pré-anunciados dos últimos anos, tem sido descrito como o "fim de uma era”, "a prova do declínio absoluto americano”, "um desastre geoestratégico monumental”. Há razões para este tipo de observações: jornalistas e analistas andam em busca permanente de momentos "históricos”, capazes de alimentar o carrossel online de visualizações e partilhas, prolongando assim a vida de cada evento. Estão no seu legítimo direito, mas permitam-me que proponha uma outra abordagem, menos apaixonada e certamente expurgada de leituras apocalípticas. 
Em boa verdade, uma parte relevante do plano político-militar que enquadrou a saída dos EUA do Afeganistão ficou calendarizada na Cimeira da NATO realizada em Lisboa, em Novembro de 2010, era Barack Obama presidente. Nesse momento, todos os aliados acordaram em transferir para as forças armadas afegãs a legitima responsabilidade do controlo da maioria das operações no território afegão, a partir de 2014, o que implicaria, desde aí, que se procedesse à redução da presença das missões americana e da NATO. Em junho de 2011, Obama anunciou a retirada de 33 mil homens até ao verão de 2012, número equivalente ao reforço enviado em 2009 para conter o crescimento de violência no país. Com 11 anos de uma guerra no Afeganistão cada vez menos popular entre americanos, 500 mil milhões de dólares gastos, 1800 americanos mortos e eleições presidenciais em novembro de 2012, não se pode dizer que não tivessem existido razões para a tomada da decisão. Até porque Bin Laden já havia sido capturado. Em 2014, já reeleito, Obama anunciou novas fases de retirada até 2016, altura em que sairia da Casa Branca, deixando no Afeganistão um contingente de cerca de 10 mil homens, uma parte para treinar militares afegãos e outra para missões anti-al Qaeda. Tudo isto num contexto não tão paralelo de caos na Síria, Líbia, Iraque e Iémen, o que bloqueou decisões em Washington sobre intervenções de natureza semelhante à que levou os americanos ao Afeganistão. 
Curiosamente, a chegada de Trump à Casa Branca não precipita a saída do Afeganistão, muito por culpa da influência que a cadeia militar teve nalgumas decisões políticas. Apesar do caos metodológico do team Trump, o presidente americano rodeou-se de generais como elemento legitimador no sistema político, figuras essas que nunca alinharam com saídas abruptas do Afeganistão por motivações mais nacionalistas que pudessem alimentar a decisão do novo presidente dos EUA. Nos dois anos seguintes, ou seja, até 2019, a administração predispõe-se a sentar à mesa com todos os envolvidos no processo político afegão, inclusive os talibans. Até que em fevereiro de 2020, em Doha, o enviado especial dos EUA Zalmay Kahlilzad e o mullah Abdul Baradar, um dos principais líderes políticos taliban libertado das prisões paquistanesas em 2018, a pedido de Washington, assinam um acordo de retirada total até ao verão de 2021. Por outras palavras, os EUA não só legitimaram os talibans como interlocutor político válido e indispensável, como abriram às claras o calendário, permitindo uma reorganização estratégica atempada que culminaria na tomada, sem sangue, de Cabul.


Acresce a isto o alinhamento dos aliados em relação às decisões tomadas por Washington, e que grosso modo o novo presidente Biden manteve, bem como a legitimação e apoio que a cúpula política taliban foi obtendo nas visitas feitas a Moscovo e Pequim. Do ponto de vista factual, este processo político-militar nada teve de apocalíptico: antes pelo contrário, foi negociado e exposto passo a passo entre todos os intervenientes. Uma outra fatia de análise está no mediatismo que rodeou a caótica retirada de americanos, ocidentais e afegãos que trabalharam para os aliados, ao longo de duas semanas microscopicamente televisionadas no passado mês de agosto. É este patamar de desorganização, voluntarismo e abandono que nos prendeu de novo ao Afeganistão, não os anos que acima descrevi e suas decisões encadeadas. Faz algum sentido, por isso, que se tirem conclusões apressadas ou hiperbólicas, mas arrisco dizer que a queda de Cabul é muito mais negativa para as mulheres e raparigas afegãs do que para o poder dos EUA no Indo-Pacífico. E suscito três argumentos para tal.
Primeiro, a não existência de uma mínima coesão identitária nacional no Afeganistão desprotege a segurança da população, a não ser que esta, por razões tribais, aceite vergar aos ditames talibans. É o tribalismo identitário que explica a inexistência de um exército capaz de responder aos talibans, permitindo a ocupação do território de forma rápida e indolor. Esse tribalismo absolutista está, aliás, espelhado no recém-formado governo, onde todos os elementos são taliban, a esmagadora maioria pashtun e onde, sem surpresa, nenhuma mulher tem lugar à mesa. Por esta ordem de ideias, a prioridade internacional deve ser a de influenciar, condicionar e pressionar ao máximo as novas autoridades de Cabul, para que os direitos das mulheres e crianças sejam salvaguardados. A missão é complexa. Por um lado, vai ser preciso influenciar os interlocutores taliban, o que parece extremamente difícil. Por outro, os países que mais reforçaram o seu poder sobre Cabul (financeiro, comercial, militar e diplomático) não têm propriamente uma consciência apurada sobre direitos humanos (Paquistão, China e Rússia). 
Segundo, este eixo que legitima o "novo” Afeganistão tem uma aparente vitória sobre os EUA, embora deixe destapar uma imensa responsabilidade sobre o que se passar no terreno. Garantirão mínimos de segurança interna? Conseguirão neutralizar redes terroristas, do ISIS local a franchisados mais competitivos no maleável mercado da jihad global? E se for necessário enviar tropas para o Afeganistão, estarão dispostos a tal? Vale a pena recordar que o vizinho Paquistão tem capacidade nuclear e uma tensão com a Índia em Caxemira. E quem sustentará o novo regime em Cabul, num país totalmente dependente de ajuda externa, financiamentos bilaterais ou de organizações internacionais como o Banco Mundial e o FMI? Está a China disponível para sustentar Cabul aconteça o que acontecer no Afeganistão? E se as alterações climáticas, a inflação nos bens essenciais, e as restrições sobre os direitos das mulheres e raparigas afegãs tornarem ingovernável o país e motivarem revoltas sociais permanentes, com respostas violentas pelo regime, que fará a China perante a pressão internacional? E em caso de violência generalizada, que condições existirão para que Pequim possa estabilizar os seus projectos logísticos e de extração mineira na região, fundamentais aos corredores da Belt and Road e do seu próprio desenvolvimento tecnológico global?
Terceiro, a saída dos EUA e dos aliados da NATO do Afeganistão (Portugal incluído), na mais longa e cara guerra da sua história, não implica nem a fuga de Washington do Indo-Pacífico, nem a desistência da sua histórica influência na região em favor da hegemonia da China. Pelo contrário. Ao momento caótico da retirada seguir-se-á uma afinação da importância das alianças na região, a renovação de eixos estratégicos de ação, e a sinalização de compromissos com mais parceiros asiáticos, também eles inquietos com a ascensão chinesa. No fundo, o fim do ciclo no Afeganistão permite recentrar esforços e recursos na prioridade americana: conter a China nas suas múltiplas dimensões. E talvez a mais importante não seja nem o terrorismo islâmico levantado pelo 11 de Setembro ou a tentativa de edificar uma democracia pluralista nas fronteiras da China, mas sim proteger as grandes rotas digitais e tecnológicas que dominam o espaço oceânico por cabos submarinos, indispensáveis à grande competição estratégica do século XXI na inteligência artificial, no que vier após o 5G, na globalização informativa ou na segurança cibernética. É aqui que o recente acordo entre EUA, Austrália e Reino Unido (AUKUS) deve ser visto: como o grande movimento compensatório imediatamente indispensável à queda de Cabul. 



Disclaimer: Bernardo Pires de Lima, investigador do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa.
Os conteúdos e opiniões expressos neste texto são da exclusiva responsabilidade do seu autor, nunca vinculando ou responsabilizando instituições às quais esteja associado.

Bernardo Pires de Lima (Lisboa, 1979) é actualmente Conselheiro Político do Presidente da República Portuguesa. Além disso, é Investigador Associado do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa, analista de política internacional do Diário de Notícias, da RTP e da Antena 1, e presidente do Conselho de Curadores da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD). Foi Investigador do Center for Transatlantic Relations da Universidade Johns Hopkins, em Washington DC, e do Instituto da Defesa Nacional, em Lisboa. É autor de oito livros sobre política internacional contemporânea, sendo o mais recente Portugal na Era dos Homens Fortes: Democracia e Autoritarismo em Tempos de Covid (Tinta-da-China), publicado em Setembro de 2020. 
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