Global Risk Perspectives - Monthly insights on geopolitics, trade & climate

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Bernardo Pires de Lima
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18.05.2021

As duas grandes crises deste século

O comércio global e a geopolítica estão historicamente interligados. As grandes civilizações, impérios e, mais tarde, Estados-nação, revelaram ambições territoriais em busca de um controlo mais amplo das grandes rotas comerciais, de pontos logísticos estratégicos, erguendo posições de defesa mais ou menos permanentes, alimentando com isso a evolução da ciência, revoluções tecnológicas, disseminação de ideologias, aprimorando relações diplomáticas, assinando tratados, construindo cooperações e clivagens interestaduais ou intercontinentais, dinâmicas que no último meio século foram sendo dirimidas debaixo do chapéu consolidado das organizações internacionais.
Nesta última fase da globalização, marcada pelo alastramento do livre comércio a novas geografias, fruto das transformações geopolíticas erguidas com o fim da Guerra Fria, aceleradas posteriormente pela adesão da China à Organização Mundial do Comércio (OMC), pelos alargamentos a Leste da União Europeia ou pela entrada em cena do euro, deparámo-nos com dois momentos de disrupção sistémica, embora de natureza distinta: a grande crise financeira de 2008-2009 e o grande choque pandémico de 2020-2021. Se a primeira teve origem num acumular de vícios no sistema financeiro, com epicentro no mercado imobiliário norte-americano, o segundo resultou numa espiral de respostas a contrarrelógio para conter um drama de saúde pública que virou as economias do avesso. Há dez anos mergulhámos em austeridade, hoje falamos de pacotes de estímulos como nunca se viram. 
Na grande crise financeira, o sistema bancário entrou em colapso, com os Estados e as organizações financeiras em contenção de danos, com impactos nas dívidas pública, privada e no desemprego. No grande choque pandémico, o sistema bancário resistiu, adaptou-se, e os Estados e as organizações regionais adotaram políticas financeiras expansionistas como forma de erguerem uma rede social à altura dos danos. Da primeira, vimos emergir grandes negócios tecnológicos de escala global (WhatsApp, Uber, Instagram, Slack, Pinterest, Groupon, Square, Venmo, Zoom, Aibnb), mudando hábitos de consumo, de socialização, de financiamento, de práticas laborais. Do segundo, a escalada daqueles negócios misturada com a noção de uma indispensabilidade reindustrial, segurança nas rotas logísticas de primeira necessidade, papel do Estado na proteção ao emprego, empresas e serviços públicos. 


O ano de 2008 marcou, no contexto geopolítico, a reafirmação neoimperial da Rússia e da China – com a guerra na Geórgia e os apoteóticos Jogos Olímpicos, respetivamente -, sinais distintos de poder que marcariam a década seguinte e entravam em rota de colisão com o abanão na hegemonia americana, sofrido com a grande recessão 2008-2009. Este ajuste de peças dura até hoje, o que prova que as transições na ordem internacional podem ser menos súbitas do que muitas vezes pensamos. A posterior agressividade de Moscovo na Ucrânia, na Síria e a perpetuação no poder de Putin, não foi acompanhada por crescimento económico sustentável ou diversificação produtiva, recuperando de choques externos mais lentamente: o PIB russo equivale hoje ao espanhol, o que torna menos luminoso o seu futuro próximo e obriga o Kremlin a mascarar essas debilidades internas com bullying no exterior, exaltando a mitologia perdida. 
Em Pequim, a confiança imperial de Xi Jinping iniciada em 2012, exulta uma maior variedade de instrumentos na globalização, dos mega projetos de infraestruturas espalhados pela Ásia Menor, Central, África, Europa e América Latina, ao aparente financiamento sem limite que está a gerar uma bolha interna preocupante, às manifestas ambições territoriais no Mar do Sul da China em rota de colisão com vizinhos do sudeste asiático que olham para o investimento exponencial na Defesa chinesa com extrema inquietude: o seu orçamento aumentou mais de 400% numa só década, sendo hoje o segundo maior do mundo. 
Foi, também, sob este xadrez que Washington foi tentando, na última década, encontrar um papel depois do abanão da crise do subprime. Com Obama, tentou acomodar várias ascensões regionais (China, Rússia, Índia, Irão, Turquia, Brasil), com respostas distintas e efeitos diversos. Com Trump, procurou reverter tudo e assumir uma beligerância permanente no comércio, na segurança, nas alterações climáticas, na diplomacia, na energia, nas migrações, e no papel das organizações internacionais. As marcas deixadas pelo seu mandato e a eclosão simultânea da pandemia – cujo efeito maior foi tê-lo derrotado em 2020 -, estão a permitir perceber algumas linhas com que se coserão os próximos anos. 



Disclaimer: Bernardo Pires de Lima, investigador do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa.
Os conteúdos e opiniões expressos neste texto são da exclusiva responsabilidade do seu autor, nunca vinculando ou responsabilizando instituições às quais esteja associado.

Bernardo Pires de Lima (Lisboa, 1979) é actualmente Conselheiro Político do Presidente da República Portuguesa. Além disso, é Investigador Associado do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa, analista de política internacional do Diário de Notícias, da RTP e da Antena 1, e presidente do Conselho de Curadores da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD). Foi Investigador do Center for Transatlantic Relations da Universidade Johns Hopkins, em Washington DC, e do Instituto da Defesa Nacional, em Lisboa. É autor de oito livros sobre política internacional contemporânea, sendo o mais recente Portugal na Era dos Homens Fortes: Democracia e Autoritarismo em Tempos de Covid (Tinta-da-China), publicado em Setembro de 2020. 
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