Global Risk Perspectives - Monthly insights on geopolitics, trade & climate
Voltar aos artigosBernardo Pires de Lima
18.06.2021
Novelos no Médio Oriente
Há dias que nos ajudam a ter noção das múltiplas cores da política internacional. Há meia dúzia de anos, em Jerusalém, conheci uma pessoa cuja coragem mudou a sua vida, mas também serve de metáfora para enfrentar problemas quentes na região. "L.” foi comandante de uma brigada de elite do exército israelita, quando ficou gravemente ferido numa missão antiterrorista. Tinha vinte e poucos anos e o autor dos disparos não foi um terrorista do Hamas ou do Hezbollah, mas um dos seus colegas, que o confundiu no meio da missão noturna. Ficou paraplégico, mas não se vergou. Sei bem que há exemplos de superação destes pelo mundo fora, mas o ponto é que "L.” veio a ser jogador da seleção nacional de basquetebol em cadeira de rodas e achou que a melhor maneira de me expor a complexidade do Médio Oriente e da relação entre Israel e a Palestina era convidar-me a sentar-me e jogar com ele. Assim fiz. A perspetiva alterou-se, os medos surgiram, em seguida as contrariedades, as frustrações, a necessidade de perceber o adversário, o que o move, porque estamos ali, quem nos pôs ali. Um jogo de basquetebol com dois lados: cada um com os seus argumentos, motivações e armas.
A intenção ao referir esta história não é basquetebolizar os conflitos do Médio Oriente. Costumo, aliás, ser inflexível quanto às colagens metafóricas entre desporto e guerra. O ponto não é este, mas a necessidade de calçarmos os sapatos de outros para percebermos o que está em causa. Não se trata de condescender ou desculpabilizar quem quer que seja, apenas a disponibilidade para fazermos um exercício de rutura com as nossas verdades absolutas na busca de melhores ângulos de análise. E boas análises melhoram decisões.
Podemos definir Israel e o Médio Oriente com quatro palavras mágicas: território, identidade, religião e recursos. E é na permanente disputa de fronteiras entre estas esferas que a conflitualidade surge com maior ou menor intensidade. Nessa mesma viagem, almocei em casa de uma família drusa em Daliyat el-Carmel, a norte de Haifa, discutíamos a hierarquia desses quatro fatores. Os drusos são uma minoria árabe integrada em Israel e presente sobretudo no Líbano e Síria. Assumem uma conduta pública discreta, não conflitual e assente na simplicidade da demonstração religiosa. Cultivam a lealdade para com o estado onde vivem e no caso israelita servem tanto as forças armadas, a polícia ou a carreira diplomática. Na hierarquia dos fatores, a identidade vem em primeiro lugar e completa a filiação.
Num estado multiétnico e democrático como Israel, assente numa identidade judaica fundadora, o problema maior não se chama Palestina, Hamas ou plano nuclear do Irão. O maior desafio - raciocínio exportável a toda a região – está na forma minimamente harmoniosa como o poder político é capaz de integrar as várias identidades e encaixá-las num puzzle em que cada peça exacerba o seu carácter religioso e uma legitimidade histórica indisputável. Para perceber esta complexidade evitemos usar a lente ocidentalista e monocolor.
Nos últimos anos, as leis aprovadas por Netanyahu sobre a nacionalidade e a identificação exclusiva de Israel como Estado judaico, revelaram precisamente o medo de que a colisão identitária entre árabes e judeus possa um dia, por força da demografia, alterar a equação interna. Mas mostrou também como a fragmentação do sistema partidário tornou central os extremos ideológicos e condicionou a moderação das decisões. É por isto que nos últimos dois anos, Israel teve quatro eleições legislativas, um reflexo do bloqueio político em que mergulhou, com efeitos na tribalização do discurso.
Em parte, o bloqueio político israelita e mais um adiamento das eleições na Palestina explicam o recente regresso à beligerância entre Telavive e Gaza. Mas mesmo que eles sejam desatados processualmente, nada garante que a conflitualidade não regresse. Porque vai regressar, seja para mediatizar a dupla questão palestiniana (em Gaza e na Cisjordânia) ou para gerar coesão na fragmentada sociedade israelita. Para evitar este roteiro recorrente, ou Israel consegue forçar a desmilitarização do Hamas em Gaza ou a diplomacia garante um fôlego surpreendente que leve a solução dois-estados a bom porto. Nem uma nem outra são realidades plausíveis a curto prazo. Por um lado, a desmilitarização de Gaza implicaria uma maciça e prolongada ocupação israelita, com beneplácito regional ou internacional, o que não tem hoje acomodação e implicaria enormes riscos militares, civis e políticos. O vulcão islamista que rodeia Israel também não aconselha este tipo de aventuras.
Para desmilitarizar Gaza e assegurar que a intervenção não foi a última antes da próxima, seria preciso fazer um intenso trabalho diplomático para aproveitar a convergência entre a frente regional anti-Hamas (Egito, Jordânia, Arábia Saudita), os EUA, a UE e as Nações Unidas. Bastaria que Israel assentasse nas boas relações com Rússia e China a aprovação no Conselho de Segurança de uma força de "manutenção da paz” em Gaza, com financiamento e meios suficientes para esvaziar militarmente o Hamas, as Qassam, a Jihad Islâmica e reconstruir a Faixa? Talvez. Em tese. A questão é que a espargata russa na Síria e na Ucrânia aconselham Moscovo a temperar novos envolvimentos, mesmo que políticos, e a China está mais orientada para focos de segurança regionais absorventes. Além disso, não se consegue moldar o Hamas sem a influência do Irão, o que implicaria acelerar o diálogo depois dos anos perdidos com Trump. Ora, nada disto está minimamente encarreirado, o que torna difícil encontra uma luz ao fundo do túnel.
Por fim, seria sempre possível acreditar que umas eleições nos territórios palestinianos conduzissem a uma solução mais aceitável, na qual a Autoridade Palestiniana vencesse em Gaza e na Cisjordânia, apoiada com meios suficientes e de longa duração para conseguir pagar salários, administrar escolas, hospitais, polícia, esvaziando politicamente os grupos que só têm feito mal a Gaza e à região. Para isso, Israel precisa, em paralelo, de fazer concessões na Cisjordânia. A ver pela predisposição galopante israelita em construir colonatos, temo que nada disto esteja em cima da mesa.
Disclaimer: Bernardo Pires de Lima, investigador do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa.
Os conteúdos e opiniões expressos neste texto são da exclusiva responsabilidade do seu autor, nunca vinculando ou responsabilizando instituições às quais esteja associado.
Bernardo Pires de Lima (Lisboa, 1979) é actualmente Conselheiro Político do Presidente da República Portuguesa. Além disso, é Investigador Associado do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa, analista de política internacional do Diário de Notícias, da RTP e da Antena 1, e presidente do Conselho de Curadores da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD). Foi Investigador do Center for Transatlantic Relations da Universidade Johns Hopkins, em Washington DC, e do Instituto da Defesa Nacional, em Lisboa. É autor de oito livros sobre política internacional contemporânea, sendo o mais recente Portugal na Era dos Homens Fortes: Democracia e Autoritarismo em Tempos de Covid (Tinta-da-China), publicado em Setembro de 2020.