Ao contrário do que reza o título do filme dos irmãos Coen, "Este País Não É para Velhos", parece que o nosso mundo se torna cada vez mais um lugar habitado por pessoas de idade.
Por todo o mundo, à exceção de poucas regiões, os seres humanos vivem mais tempo mas têm menos filhos, exercendo uma pressão adicional sobre os sistemas de saúde. Com os nossos especialistas, descubra como a Europa, a América Latina e a Ásia estão a enfrentar estes desafios.
Quais são os papéis dos setores público e privado na proteção da saúde? Que serviços são fornecidos pelo Estado e pelo setor privado?
Ana Mota (AM): Na Europa, Docteur & Oxley1 e a OCDE2 identificaram três modelos de financiamento principais nos serviços de saúde.
Baseiam a sua classificação em critérios de financiamento público e privado e na relação contratual entre os prestadores e os pagadores dos serviços de saúde. Os modelos são:
·· Integração pública – financiamento público e prestadores públicos de serviços de saúde (os profissionais da saúde são, na maioria, funcionários do setor público)
·· Contratação pública – combina financiamento público através de impostos ou fundos da segurança social com prestadores privados
·· Seguro/prestador privado – entidades públicas contratam com prestadores de
serviços de saúde do setor privado.
Na maior parte dos países, os hospitais públicos e privados coexistem em proporções que variam. Por exemplo, na Europa do norte predominam os hospitais públicos, ao passo que no sul os serviços privados estão em crescimento.
A prestação de serviço é muito semelhante em ambos os setores, sendo alguns cuidados como os casos de pandemias, transplante de órgãos ou outras situações excecionais da responsabilidade exclusiva do estado. Recentemente, o setor privado expandiu a sua gama de serviços para incluir áreas que eram antes exclusivas do setor público.
Prevê-se que esta tendência, que é consequência direta do desenvolvimento do seguro privado de
saúde, se mantenha.
Gustavo Quintão (GQ): O continente sul‑americano é marcado por constantes transformações sociais, políticas, económicas e culturais, muitas delas recentes. Neste contexto, a oferta de saúde, entre outras políticas sociais, também é afetada. Saúde universal e de qualidade para toda a população é desejo de todos os países, os quais enfrentam barreiras similares para sua aplicação: administração de recursos, subfinanciamento e importantes mudanças demográficas.
No Brasil, temos o maior sistema público de saúde do mundo, citado diversas vezes como referência de modelo gratuito e universal. A Constituição do País, datada de 1988, estabeleceu o Sistema Único de Saúde (SUS), regido pelos princípios de universalidade, equidade e integralidade, determinando que "a saúde é um direito de todos e dever do Estado”.
No País, é livre a atuação da iniciativa privada por meio da Saúde Suplementar, na qual está contemplada 25% da população (cerca de 50 milhões de beneficiários). Ao contar com a cobertura do plano de saúde, o cidadão não perde o direito de ser atendido pelo SUS.
Julie Lim (JL): Como em muitos outros países em todo o mundo, os sistemas de saúde na Ásia são descoordenados e sofrem de várias complicações: excesso de utentes nos hospitais públicos, tempos de espera longos (já que o rácio paciente/profissional da saúde é muito elevado), profunda ineficiência e
complicação dos sistemas e diferenças na cobertura geográfica, com as áreas rurais a terem acesso a postos clínicos muito básicos. À medida que sobe o nível de vida da população, o desequilíbrio no rácio de profissionais clínicos nos hospitais públicos e privados continuará a crescer.
Dito isto, os modelos de cuidados de saúde na Ásia apresentam estruturas diversas, mas podem geralmente classificar‑se da seguinte forma:
·· Acesso universal à saúde prestado pelos setores público e privado
·· Cuidados públicos de saúde subsidiados para os cidadãos
·· Cuidados privados a oferecer serviços de primeira categoria.
O financiamento da saúde também varia, tipicamente vindo de três fontes principais:
·· Órgãos de governo central e local
·· Contribuições obrigatórias individuais (ao abrigo da legislação da segurança social)
·· Seguros (do Estado ou privados).
Em Singapura, por exemplo, existe um sistema de cuidados de saúde público e integrado que presta serviços eficientes, em tempo útil e economicamente viáveis a todos os residentes, subsidiado para os cidadãos e residentes legais. Os serviços incluem cuidados primários, hospitalares, dentários, tratamentos de médio a longo prazo e medicina chinesa tradicional. Os hospitais e clínicas privados apoiam sobretudo residentes e turistas de outros países.
Na China, o setor público presta um serviço com base em taxas moderadoras, com limites definidos pelas autoridades locais de saúde. Os reembolsos são efetuados através de um esquema de seguro gerido pelo Estado, estando a partilha de custos e as despesas pagas pelo utente, tanto para os cuidados
primários como hospitalares, sujeitas a limites máximos. A infraestrutura dos cuidados de saúde públicos abrange os hospitais das vilas e comunidades, bem como médicos de aldeia e clínicas nas áreas urbanas e rurais.
As clínicas e hospitais privados existem sobretudo nas áreas urbanas e o seguro de saúde privado cobre pagamentos dedutíveis, co‑pagamentos e outras lacunas na partilha de custos.
A Indonésia tem um sistema diferente. Oferece cuidados de saúde gratuitos com apoio de hospitais privados e indústrias farmacêuticas semi‑privadas por via de um programa universal de seguro de saúde que coexiste com planos de seguro privado.
Como é que os sistemas funcionam lado a lado? Oferecem alternativas às pessoas? Como se apoiam ou complementam entre si?
Ainda assim, a Saúde Suplementar também tem suas próprias barreiras a serem vencidas: os planos empresariais, que correspondem a cerca de 80% deste mercado, estão enfrentando dificuldades para continuar oferecendo assistência médica como um benefício devido ao constante aumento de custos – de 8 a 10 pontos percentuais à frente da inflação geral do País. Por outro lado, o plano de saúde é um dos benefícios mais requisitados e importantes para os colaboradores, o que reitera a importância de as empresas manterem sua oferta.
Para que qualquer plano de seguro de saúde a nível nacional seja sustentável, os sistemas de saúde públicos terão de cumprir padrões mínimos ao nível das instalações técnicas e prestação de serviços. Isto permitir-lhes-á funcionar paralelamente aos cuidados de saúde privados e evitará a utilização
GQ: No Brasil, o financiamento do sistema público ocorre única e exclusivamente por meio da arrecadação de impostos gerais, com a participação dos municípios, estados e da União. Na Saúde Suplementar, o seguro saúde é voluntariamente pago pelo contratante (pessoa física, jurídica ou entidade de classe).
JL: Varia por país. Na Malásia, por exemplo, o sistema de saúde universal é assegurado por um sistema público subsidiado que chega ao utente através de uma rede de clínicas e hospitais primários. O Estado é o principal fornecedor de cuidados de saúde públicos, com financiamento através de impostos.
Em Singapura, todos os cidadãos e residentes legais são abrangidos pelo Programa Nacional de Cuidados de Saúde, que é pago pelo seu fundo de segurança social (e parcialmente co‑financiado pelas contribuições dos seus empregadores).
A China tem um sistema completamente diferente, já que a maior parte das instalações clínicas e hospitalares são asseguradas pelo setor público. Os hospitais públicos são, portanto, fortemente financiados pelo Estado. Não há tratamento médico gratuito, a não ser em emergências e casos de vida ou morte.
Os seguros de saúde são administrados pelo governo, com contribuições por parte do trabalhador e do empregador. Os cidadãos devem pagar o remanescente e contribuir para o custo do tratamento.
Quanto ao financiamento, no norte é assegurado pelas contribuições fiscais e da segurança social. Noutros lugares é um misto de impostos, segurança social, co‑pagamentos e seguros privados.
JL: Na Ásia, os cuidados de saúde são prestados por instituições médicas devidamente acreditadas e reconhecidas. Os cuidados domiciliários não são comuns já que existem várias soluções alternativas, como as casas de repouso, centros de cuidados paliativos, lares da terceira idade e centros residenciais para doentes crónicos.
A filosofia do governo sobre o financiamento do sistema de saúde sempre partiu do princípio de que as pessoas devem ser parcialmente responsáveis pelos custos dos cuidados de saúde que recebem. Assim, o sistema de saúde é financiado por impostos, deduções salariais e co‑seguro com pagamento em excesso.
Qual é o papel e importância do setor segurador?
AM: Por causa das diferenças nos sistemas nacionais de saúde e de segurança social, o papel do seguro de saúde privado difere significativamente entre países. Na Europa assume quatro formas básicas:
·· Adicional – complementar e suplementa– seguro de saúde voluntário complementa o que é obrigatoriamente garantido pelo Estado3
·· Substituição – o seguro substitui o sistema de saúde com financiamento público
·· Duplicação – o seguro opera como alternativa privada em paralelo com o sub‑sistema público (como no R.U. e Espanha)
Isto eliminará o desperdício de fundos estatais nos serviços nacionais de saúde, na despesa dos empregadores em seguro de saúde empresarial e os consumidores não terão de pagar desnecessariamente por serviços de saúde.
GQ: Atualmente, no Brasil, existem diferentes modalidades de planos de saúde privados. Todos oferecem rede de atendimento (seja credenciada, própria ou mista) e a maioria oferece também a possibilidade de reembolso para a utilização de prestadores que não se encontram na rede disponibilizada.
O uso do seguro via reembolso é mais atraente e muitas vezes somente disponibilizado para os planos superiores, já que geralmente o ressarcimento é integral ou quase integral. Para os planos inferiores, o reembolso é menor e em geral não compensa para o usuário, que terá que arcar com o restante da despesa.
JL: Os seguros de saúde ainda são essencialmente geridos de duas formas: através de um sistema de managed care e de sistemas de reembolso.
O sistema de managed care é usado essencialmente em programas com prémios de baixo valor, em que os serviços médicos são monitorizados de perto. O sistema de reembolso é normalmente oferecido em programas de seguro pagos pelos empregadores, permitindo aos trabalhadores obter tratamento dos profissionais da sua escolha.
Os seguradores não possuem, habitualmente, as suas próprias unidades clínicas ou instalações médicas.
Há prestadores de serviços médicos e grupos hospitalares plenamente estabelecidos na região, que oferecem instalações e serviços da mais alta qualidade. Por exemplo, a Fullerton Healthcare, que tem sede em Singapura, opera em quatro mercados no sudeste asiático e na Austrália.
A empresa oferece cuidados primários e tem hospitais e clínicas que praticam preços inferiores aos dos hospitais públicos. A KPJ Healthcare, um grande gestor de instalações médicas na Malásia, trata pacientes segurados em condição "estável”.
Encarando o futuro – como é que os países pretendem lidar com a questão do envelhecimento e com os custos de saúde associados à provisão de cuidados a longo prazo?
Isto resultará provavelmente num aumento das soluções do setor de seguro privado – especialmente nos cuidados de longo prazo – mas a sua sustentabilidade dependerá da contribuição do setor público.
Até agora, não houve desenvolvimentos significativos nesta área na maior parte dos países. De modo a encontrar uma solução sustentável e eficiente, deve promover-se uma discussão política entre todas as partes afetadas. As poucas soluções existentes operam de forma isolada e na maior parte dos casos são insuficientes.
GQ: Tendo em vista, principalmente, os avanços tecnológicos e em medicina, estamos vivendo uma era de aumento de expectativa de vida. Neste contexto, surge uma importante preocupação: como cuidar das pessoas para que elas envelheçam de forma saudável?
A barreira para sua aplicação é, acima de tudo, cultural. Temos uma população que privilegia a consulta com médico especialista por acreditar que o atendimento será melhor, o que não é necessariamente verdade.
Estudos revelam que um médico de família consegue resolver mais de 80% dos casos e, quando precisa remeter o paciente a um especialista, o faz de maneira mais informada, ou seja, considerando sua necessidade real.
JL: Com uma população de 4,5 mil milhões e ainda a crescer (dados de 2018), a Ásia é a maior e mais populosa região do mundo. A sua população quase quadruplicou durante o séc. XX e a Deloitte calcula que, até 2030, cerca de 60% da população global total com 65 anos ou mais residirá na Ásia.
Este facto, associado a uma prosperidade crescente que fez surgir uma classe média abastada e cada vez mais numerosa, está a causar um desequilíbrio nos ecossistemas dos cuidados de saúde públicos e privados.
Com coberturas de seguro mais amplas, os consumidores tendem a usar mais serviços de saúde, submetendo‑se, por exemplo, a exames médicos desnecessários, ou não definem um orçamento realista para as suas despesas médicas. Estes custos acabam por subir os prémios de seguro a longo prazo.
Que soluções estão a implementar e que impacto terão elas no setor segurador?
AM: De momento não existem propriamente soluções adequadas, mas o setor segurador tem um papel importante a desempenhar no que toca a encontrar respostas juntamente com os governos e outros stakeholders.
As políticas demográficas podem ter contributos relevantes a prestar, mas em vários países europeus (Portugal incluído) as taxas de fertilidade pouco ultrapassam um filho por mulher, pelo que o futuro parece negro nesta área.
GQ: Um bom exemplo de tecnologia que tem apoiado o setor de saúde é o Prontuário Eletrônico do Paciente (PEP), sistema que registra informações médicas dos pacientes e tem capacidade de interoperabilidade com outras plataformas. O PEP contribui para a qualidade da assistência prestada, já que registra todos os cuidados pelos quais o paciente está passando.
JL: Se pensarmos no futuro, vemos que a paisagem da saúde assenta sobretudo em parcerias, interação e inovação. Todas as partes afetadas no sistema de saúde, incluindo os governos, terão de colaborar ainda mais para reduzir o desperdício e o peso financeiro – em áreas desde a criação de políticas ao desenvolvimento de produto.
É previsível que os avanços nos cuidados de saúde e nas tecnologias digitais possam colmatar as falhas de comunicação entre todos os participantes no sistema de saúde, acelerando
a transmissão e acessibilidade de dados para estudo analítico e inovação nos produtos.
Como é que as novas tecnologias afetarão os seguros de saúde, especialmente do ponto de vista do custo?
Neste caso, como os pacientes se automonitorizam, tendem a adotar medidas mais preventivas, a tecnologia contribuirá para a redução de custos a médio e longo prazo.
GQ: No setor privado, ferramentas tecnológicas permitem a antecipação de riscos futuros e têm sido de grande valia na redução de custos e otimização de recursos.
Hoje, algoritmos de machine learning conseguem prever com boa assertividade grupos de indivíduos com alta probabilidade de desenvolvimento de determinada patologia no futuro. Com esse tipo de solução, saímos de uma atuação que há anos tem olhado para o retrovisor para, a partir de agora, olhar para frente e tentar solucionar e reverter problemas de saúde com muito mais eficiência e de forma inteligente.
Além disso, as aplicações móveis, de fácil utilização pelo paciente, vão ajudar as pessoas a controlar e responsabilizar‑se pela sua saúde. As aplicações móveis apresentam um sem‑fim de oportunidades, intervenção precoce na saúde e soluções de saúde para consumidores e prestadores de serviços.
Que papel têm os seguradores desempenhado na educação para a saúde e até que ponto acham isto importante?
GQ: Segundo a Universidade de Stanford, a saúde de uma pessoa é determinada principalmente pelos seus hábitos de vida (53%), seguido por meio ambiente (20%), genética (17%) e por último assistência médica (10%).
Por mais que ferramentas tecnológicas tragam incontáveis oportunidades de melhoria nos sistemas de saúde e na entrega de serviços, os principais agentes de transformação ainda são as pessoas e suas escolhas.
JL: Os seguradores não desempenham um papel ativo na educação para a saúde, já que não existe rubrica orçamental para executar campanhas a nível nacional ou estatal. A educação pública para a saúde é ativamente promovida pelos ministérios da saúde em cada país.
Estas seguem frequentemente as recomendações dos governos relativas aos programas de saúde ou devem‑se à implementação de leis ou políticas específicas.
1. DOCTEUR, Elizabeth, OXLEY, Howard – Health‑Care Systems: lessons from the reform experience. OECD Health Working Papers [online]. N. 374 (December 10, 2003). Disponível em:
https://ssrn.com/ abstract=1329305
2. OECD – Private Health Insurance in OECD Countries. Paris: OECD, 2004. ISBN 9789264007451
3. INSURANCE EUROPE – European Insurance in Figures – 2016 data. Brussels: Insurance Europe, 2018.