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Imortalidade – facto ou ficção?

Quando lemos um pouco por todo o lado que existe uma forte probabilidade de o ser humano vencer a sua mais antiga e derradeira batalha – contra a morte – quisemos saber o que pensa uma das mais reputadas cientistas portuguesas na área dagenética, a Profª Maria do Carmo Fonseca, sobre este e outros temas relacionados com o futuro da medicina

Imortalidade – facto ou ficção?
Medicina de precisão
O primeiro passo foi clarificar que a expressão "medicina genética”, não é correta. Segundo a Prof.ª
Carmo Fonseca, o termo adequado é "medicina de precisão”, conceito desenvolvido pelo atual Diretor do
National Institutes of Health dos Estados Unidos, Francis Sellers Collins, um médico geneticista, que
defende que o conhecimento do enoma humano se vai traduzir numa nova forma de fazer medicina, a que
ele chama "medicina de precisão”. 

Vai‑nos permitir identificar com uma precisão não disponível até agora o que se passa de errado, quimicamente, com o nosso organismo e que provoca a doença. Esse conhecimento permite utilizar o medicamento certo para aquela alteração molecular, que por sua vez na maior parte das vezes terá por trás uma alteração genética.

Assim, a genética é o que dá substrato à medicina de precisão. A medicina de precisão não irá resolver
todos os problemas de saúde, mas já está a salvar vidas, por exemplo, no caso do cancro. Sendo uma doença que resulta de alterações genéticas, o conhecimento que a comunidade científica está a ter do genoma do
cancro leva a que vários cientistas estejam a desenvolver métodos para atacar essa alteração molecular.

Velhas batalhas, novas técnicas
Novas técnicas de diagnóstico como a biópsia líquida – uma análise ao sangue – permitem‑nos ter uma visão das alterações moleculares. Dá‑nos exemplos: "Já temos casos, aqui no hospital, de doentes com cancro da mama avançado, que já tinham esgotado todos os tratamentos disponíveis.

Realizámos uma biópsia líquida, que nos permitiu detetar alterações específicas que podiam ser tratadas com um medicamento alternativo, que foi experimentado com resultados muito positivos. A biópsia
líquida é um exemplo da vantagem da Medicina de Precisão.”

Já no que respeita à erradicação do cancro tem uma visão otimista: "Embora se diga que temos vindo a perder esta luta, não concordo. Temos ganho cada vez mais batalhas. Conseguimos tratar cada vez mais cancros e manter as pessoas vivas durante mais tempo. Acredito que vamos assistir a novas vitórias; para já, com uma nova arma que é a imunoterapia, que consiste em ensinar o nosso próprio sistema imunológico a destruir as células cancerosas. E depois, no limite, há esta ideia de que a pessoa pode viver eternamente sem o seu corpo, ligando a biologia à máquina…”

Biologia vs tecnologia
Irão os seres humanos alcançar a imortalidade, como defende a doutrina do transumanismo, que preconiza o fim da morte? Responde‑nos que estamos já a ganhar anos de vida, embora envelhecidos, sendo agora
o grande desafio o de prolongar a juventude: "A comunidade científica e os grandes pensadores estão
convictos de que durante este milénio a humanidade vai conseguir atingir a imortalidade.

O como é que ainda é um grande ponto de interrogação; existem duas abordagens e não se sabe qual vai ser a primeira a atingir o objetivo, ou se o farão em conjunto”. 

A Prof.ª Carmo Fonseca acredita na junção de esforços de áreas diferentes: a biológica, relacionada com a nossa capacidade de fazer alterações genéticas e a das engenharias, dos robôs, da inteligência artificial: ”Neste momento é a área tecnológica que está a avançar mais rapidamente. Por uma razão que acho fascinante: tudo o que é tecnológico é construído e controlado pelos seres humanos, sendo que conhecemos todas as variáveis.

Na componente biológica tentamos manipular e controlar algo que evoluiu ao longo de milhões e milhões de anos – o organismo biológico humano – com tantas variáveis que se torna impossível prever as consequências dessa manipulação. Todas as experiências que têm sido feitas neste âmbito demonstram que se trata de algo extremamente arriscado.

Daí que me pareça que a parte tecnológica, de modificarmos o nosso corpo com dispositivos fabricados e controlados por nós vai avançar mais rapidamente do que a nossa transformação biológica.”

Mas então, perguntamos, o ser humano vai atingir aquilo que sempre ambicionou? Ser imortal? A sua resposta é clara: "Estamos a trabalhar nesse sentido. É uma questão de tempo! O tipo de "ajudas” que já
conseguimos introduzir no corpo humano irá certamente manter‑nos mais ativos e com mais capacidades
durante mais tempo. Por exemplo iremos substituir os nossos olhos por sensores e as nossas pernas por
pernas artificiais que correm mais rapidamente, etc…”

E o papel da ética? Concorda que este tema vai colocar problemas éticos e de gestão de risco completamente
novos: "Imagine que alguém pretende amputar as suas pernas; não tem qualquer problema de saúde, mas
ainda assim quer faze‑lo porque quer ser um corredor de alta competição e, portanto, ter o maior desempenho possível.

Será isto aceitável? E como iremos lidar com o risco associado a este tipo de intervenções?” E prossegue, referindo a ideia de, em vez de usarmos computadores e termos o telemóvel na nossa mão, implantarmos
chips dentro do nosso próprio cérebro e ser este que manipula diretamente o smartphone ou o computador.

Um novo paradigma – a prevenção ativa da saúde
Fala‑se hoje em biossensores físicos e químicos que permitirão detetar precocemente as "avarias” nos nossos corpos, ou seja, a probabilidade de se contraírem doenças, permitindo uma atuação preventiva.

A Prof.ª Carmo Fonseca concorda que se trata de uma área em grande desenvolvimento: "Na realidade já existe um conjunto significativo de dispositivos que nos dão informação sobre o nosso corpo, por exemplo sobre a pulsação, a tensão arterial ou a temperatura, permitindo captar uma grande quantidade de informação biológica.

A grande questão é como é que nós vamos conseguir traduzir essa informação em algo útil. É aí que entram a inteligência artificial e o big data. Precisamos de ter um histórico – dados relativos a muitas pessoas ao longo do tempo, de modo a conseguir associar determinados padrões de alteração a um determinado acontecimento – o aparecimento das doenças. Quando tal for possível conseguiremos preveni‑las.

Também aqui estamos a falar em desenvolvimento tecnológico.” Todavia nada disto será possível
sem o envolvimento das pessoas – disponíveis para usar sensores ao longo da sua vida e partilhar os seus
dados de modo a que se possam identificar e analisar padrões.

Prossegue o seu raciocínio, afirmando "As próprias pessoas vão participar no processo de descoberta relativo à sua saúde. Temos é de pensar como é que podemos encontrar incentivos para o fazerem ativamente”.

A Prof.ª Carmo Fonseca reconhece aos seguros um papel muito importante neste processo, quer na promoção de campanhas de bons hábitos de vida, quer na atribuição de condições mais favoráveis de seguro a clientes com indicadores de saúde positivos.

O futuro é já hoje – e para todos
Mas será esta nova medicina acessível à população em geral ou só os ricos poderão ser imortais? Acredita que tal não será aceitável, e que da mesma forma que os telemóveis, e depois os smartphones se generalizaram, haverá uma pressão social forte paraque todos estes avanços da medicina se tornem transversais e acessíveis, sob pena de haver uma rotura social.

A grande vantagem de partilhar informação é que, se alguém puder ser imortal, todos vão ficar a saber.
A Prof.ª Carmo Fonseca deixa uma última mensagem aos leitores da FULLCOVER: "É fundamental preparar a população em geral para enfrentar este mundo novo que nos é prometido pela tecnologia.

Não nos podemos deslumbrar com as novidades, devemos promover um espírito crítico e de análise, até porque muitas dessas novidades não vão servir para nada. O sistema de ensino não deve ser tão focado na informação, mas sim no desenvolvimento da capacidade crítica dos alunos, que devem ser estimulados a fazer comparações e a analisar as mais‑valias de uma inovação, assim como os riscos envolvidos. É essencial que se abra debate sobre estes temas, mas um debate fundamentado em argumentos e não em pensamentos.

Com a proliferação de blogues e líderes de opinião, precisamos cada vez mais de uma argumentação com
base em evidências científicas, porque vamos ser confrontados com um mundo cada vez mais tecnológico. E
isto não vai ser daqui a cinco ou dez  anos, já está a acontecer. Temos de atuar rapidamente, porque o futuro já chegou – o futuro é já hoje”.



Maria do Carmo Fonseca
Professora Catedrática na Faculdade e Medicina da Universidade de Lisboa. Desempenha as funções de Presidente do Instituto de Medicina Molecular João Lobo Antunes (iMM), e do Conselho Científico da GenoMed (empresa spin‑off do iMM dedicada a diagnósticos de medicina molecular). Foi Diretora do Programa Harvard Medical School‑Portugal e Professora Visitante em Harvard.
Licenciada em Medicina (1983) e doutorada em Biologia Celular (1988) pela Universidade de Lisboa, é membro de várias sociedades científicas como a Organização Europeia de Biologia Molecular, e as Academias Portuguesas de Ciências e de Medicina.
Recebeu numerosas distinções, entre elas a Comenda Ordem de Sant’Iago de Espada (2001), o Prémio Ibérico de Ciência DuPont (2002), o Prémio Gulbenkian de Ciência (2007), o Prémio Pessoa (2010) e o Prémio D. Antónia Ferreira para mulheres empreendedoras (2013). Serve como editora de revistas científicas e é autora de mais de mais de 150 artigos de investigação, que totalizam cerca de 10 mil citações.
A sua investigação tem por objetivo compreender como funcionam os genes humanos de forma a contribuir para uma melhor prevenção, diagnóstico e tratamento de doenças genéticas, incluindo o cancro.

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