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Na vanguarda da investigação

Fátima Carneiro, nomeada a patologista mais influente do ano em 2018, falou com a FULLCOVER sobre uma vida de desafios e sucessos, demonstrando uma clara paixão pelo trabalho, que os anos não fizeram esmorecer.

Na vanguarda da investigação

AProf. Dr.ª Fátima Carneiro foi nomeada a patologista mais influente do mundo em2018 pela revista The Pathologist. 

Nascidaem Angola, na altura uma colónia portuguesa, país onde cresceu, estudava medicinana universidade quando a guerra civil estalou.Comomuitos outros cidadãos, teve de abandonar o país com a sua família e veio parao Porto para concluir os seus estudos. Embora sonhasse com uma carreira depediatria, acabou por se tornar patologista – uma decisão de que nunca se arrependeu.

Aprofessora Fátima Carneiro nunca escolhe o caminho mais fácil. Mesmo hoje,quando tem de observar o tecido de um paciente numa lâmina, fá-lo-á antesde receber mais informação clínica sobre o mesmo, só pelo desafio.

Acreditafirmemente que ninguém sabe tudo e defende afincadamente a importânciade obter segundas opiniões, algo que faz habitualmente.

Umaperfeccionista, extremamente exigente, mas nunca mais com os outros do que consigomesma, a professora Fátima Carneiro queria tudo – a atividade clínica, o ensinoe a investigação – e conseguiu‑o com uma carreira em patologia.Mesmo que tenha sido difícil equilibrar a vida pessoal e profissional e tenhaperdido muitas horas de sono. Durantea sua longa e brilhante carreira, procurou sempre partilhar o seu conhecimento.

AFULLCOVER teve o privilégio de a ouvir sobre uma vida de desafios e sucessos, euma paixão pelo trabalho que em nada diminuiu ao longo dos anos.

 

O que a levou a uma carreira na medicina?
Omeu sonho era tornar‑mepediatra, porque adorava crianças e a atividade clínica. Decidi tornar‑me patologista quando me formei emmedicina. Corria o ano de 1978 e tinha concluído o curso de medicina na Universidadedo Porto.
O professor de biologia celular, Manuel Miranda Magalhães, convidou‑me, nofinal do ano académico, a juntar‑me à sua equipa. Foi um convite inesperado.Após alguma hesitação, disse‑lhe que a biologia celular era umcampo demasiado sossegado para mim. A minha resposta surpreendeu‑o, jáque tal convite devia ter sido considerado um elogio e perguntou‑me quaiseram as minhas expectativas.
Para mim, eram claras: ser clinicamente ativa,ensinar (algo que eu já adorava fazer no meu terceiro ano de medicina) e ter aoportunidade de fazer investigação. Reconheço que era bastante ambição. Disse‑me ele: "Isso é Patologia.” Eununca tinha pensado nisso. A minha experiência nessa área não tinha sido especialmenteagradável (em plena guerra civil que me obrigou a deixar a Faculdade deMedicina em Luanda, Angola, e ir para a Universidade do Porto).
De repente,esta área pareceu‑meatraente e, recusando a ofertado Manuel Miranda Magalhães de me apresentar ao diretor do departamento de patologia,decidi ir falar com ele por conta própria. Lá estava eu, face aos Professores DanielSerrão e Manuel Sobrinho Simões. Este último, conhecido pela sua afabilidade, ealgo curioso (acho eu) disse que eu podia começar a trabalhar com ele no diaseguinte.Foiassim o primeiro dia de uma carreira de uma vida da qual nunca me arrependi.
APatologia permitiu‑mecobrir todas as áreas que me interessavam – o trabalho clínicomultidisciplinar, o ensino e a investigação – e também a atividade clínica nummomento crucial – o do diagnóstico.E,como não tenho uma fila de pacientes à espera, tenho alguma liberdade para trabalharem todas as áreas que aprecio sem grandes restrições de tempo.

A revista ThePathologist nomeoua a "patologista mais influente de 2018”.Que atividades de trabalho ou investigação levaram a esse título prestigioso?
Paraalém da minha participação no ensino pre‑ e pos‑graduado, anível nacional e internacional, e da atividade diagnóstica em histopatologia epatologia molecular, penso que o meu trabalho com organizações internacionaisteve importância.
Isto inclui muitos anos a apoiar instituições internacionais,como a Sociedade Europeia de Patologia, onde comecei como membro da ComissãoExecutiva, passei a presidente, presidente dos Grupos de Trabalho e presidentedo Conselho Consultivo; e com a Organização Mundial de Saúde (OMS), escrevendoe co‑editandoo seu ‘livro azul’ sobre tumores digestivas.

 

Contribuiu para múltiplas descobertas na área do cancrogástrico. Quais são as últimas descobertas, e como chegou lá?
Setivesse de escolher uma, selecionaria a minha contribuição na área do(s)cancro(s) hereditário(s) que afetam o estômago. Foi fascinante trabalhar com oInternational Gastric Cancer Linkage Consortium e estudar e caracterizar ostraços patológicos do Cancro Gástrico Difuso Hereditário (CGDH).
Maisrecentemente, completei um trabalho semelhante de caracterização do perfilhistológico da síndrome de Adenocarcinoma Gástrico e Polipose Proximal doEstômago (AGPPE).
Foram necessárias muitas horas de trabalho para estudar asuperfície total da mucosa gástrica em estômagos removidos de portadores demutações de linhagem germinativa do gene CDH1no CGDH – e centenas de imagensdigitais para o AGPPE.
Aajuda do Dr. Xiaogang Wen, patologista chinês que trabalha connosco há vários anos,foi preciosíssima nestes projetos.

 

Tem usado novos métodos de investigação e tratamento? Quaissão, e como evoluirão no futuro?
Comosou anatomo‑patologista,não pratico clinicamente – no sentido de observar e tratar pacientes. Demomento, a minha investigação centra‑se emcaracterizar o ambiente imunológico do cancro gástrico, no intuito de melhorara identificação de pacientes com cancro gástrico que possam beneficiar de imunoterapia.Este tipo de tratamento procura estimular as células imunitáriasdo paciente, permitindo‑lhesmatar, ou pelo menos ajudando‑as amatar as células neoplásicas (as células dos tumores).

 

Qual é o fundamento da medicina personalizada, e que impactotem tido na prevenção, diagnóstico e tratamento do cancro? Existe um novoparadigma nesta área?
Noseu contexto mais alargado, desde que os profissionais da saúde trabalham paraadaptar os cuidados de saúde às necessidades de cada paciente que todos os tiposde terapia são personalizados.
Nanossa área, a medicina personalizada implica o abandono da ideia de que o mesmotratamento se adequa a todos os pacientes com o mesmo tipo de doença, utilizando‑se novas estratégias para gerir melhora saúde dos pacientes (prevenção, diagnóstico precoce), procurando‑se atingir osmelhores resultados no tratamento dos pacientes através de terapia de precisão,dirigida a biomarcadores moleculares.

 

Os patologistas têm evoluído na compreensão das causas eefeitos dos cancros e outras doenças potencialmente fatais? Estamosperto de uma revolução no tratamento do cancro?
Hojecompreende‑semelhor o desenvolvimento do cancro e os fatores de pre‑disposicao que aumentam o risco de desenvolverdoenças, mais especificamente as doenças cancerosas.
Tornou‑se claro queo cancro é muito mais do que uma doença causada por alterações do genoma (mutaçõesno sentido lato). A regulação da expressão genética por mecanismos epigenéticosassume uma importância crescente.
Além disso, o ambiente do tumor é um fatorchave, mediado por células inflamatórias e imunitárias, bem como fatoresexternos, como o estilo de vida, a  obesidade e a dieta.

 

A tecnologia tem mudado a forma como os serviços médicos sãoprestados? É a medicina digital cada vez mais utilizada para proporcionar aospacientes uma abordagem mais personalizada e um tratamento adaptado?
Aquiloa que chamamos "medicina digital” vai tornar‑se cada vez mais comum, esperando euque apoie uma abordagem mais personalizada e uma evolução para o tratamentoclínico individualizado.
O papel dos bio‑bancos, com anotações clínicas, écrucial para analisar os traços genéticos e moleculares dos pacientes e dosseus tumores e estabelecer correlações com os resultados, permitindo‑nos estudar os casos excecionais(especificamente os positivos, mais do que os negativos).

 

Como gostaria de ver os serviços médicos prestados nofuturo?
Emvez de nos focarmos no tratamento de doenças avançadas, devíamos concentrar‑nos na promoção de um estilo de vidasaudável, na prevenção e no diagnóstico precoce.

 

Em sua opinião, quais são os maiores avanços da medicina naúltima década?
Compreendera influência dos estilos de vida no desenvolvimento de doenças e asmelhorias na educação para a saúde, sensibilizando as pessoas a participar maisna prevenção e nos diagnósticos precoces.
Ummaior uso de tecnologia "ómica” de alta capacidade de processamento (genómica, transcriptómica,proteómica, metabolómica, etc.) que pode ser aplicada aos indivíduos, aos seustumores e aos microbiomas, promovendo uma maior compreensão dos processosbiológicos e das doenças. Um dos desafiosque enfrentamos agora é a forma de lidar com o volume maciço de dados ("big data”) gerados pelas metodologias "ómicas”e tirar partido desta informação.

 

Participa em várias associações e comissões em Portugal e naEuropa. Como é que esta abordagem colaborativa alargada trazvantagens aos países participantes?
Todosos países têm acesso ao conhecimento partilhado nas nossas reuniões, que têmbeneficiado ao longo dos anos centenas de estudantes, residentes epatologistas. Além disso as publicações (artigos e livros científicos) tambémsão distribuídas por todo o mundo.

 

Quais são os seus maiores êxitos? E os maiores desafios?
Possocitar alguns, mas orgulha‑meparticularmente o nível de especialização queconsegui atingir na minha área de interesse, o cancro gástrico.
Resultou emdiversas colaborações de âmbito internacional, na autoria e co‑autoria decerca de 200 artigos sobre o cancro gástrico (e mais de 350 publicações e um "h‑factor” de 64) e na autoria decapítulos em livros de renome publicados pela OMS e pela União Internacional deControlo do Cancro (UICC)1.
As minhas iniciativas profissionais (no sentidomais estrito), pedagógicas e de investigação levaram a colaborações em quatrocontinentes: América do Norte edo Sul, África do Norte e Sub‑sariana, Ásia (China, Japão eSingapura), Austrália e Nova Zelândia, e Europa (neste último caso, sobretudo otrabalho com a Sociedade Europeia de Patologia).
Quantoaos desafios, o patologista do futuro deve ser capaz de compreender os mecanismosda doença e traduzir novos conhecimentos em cuidados prestados ao paciente.

 

Que conselho daria a alguém que pensa fazer carreira napatologia?
Apatologia oferece oportunidades de investigação, trabalho clínico e ensino. Éuma disciplina espantosa que desempenha um papel crucial na medicina clínica eem todos os nossos esforços de progredir na compreensão da doença.
Éuma profissão e disciplina integradora e este é um excelente momento paraentrar na profissão.
Comoprofessora universitária, acredito que há muitos jovens de talento a escolher estaprofissão, mas com uma mentalidade muito diferente.
Querem espaço para todas asfacetas diferentes da vida: pessoal, profissional e social. Algo que a minha geraçãosentia dificuldade em garantir. Isto implicará uma definição mais clara dosseus papéis contratuais, como já se verifica em paísescomo a Holanda.

 

Tem algum passatempo ou interesse?
Nãotenho tido muito tempo livre, por isso passo‑o com a família e a viajar. Levo os meusfilhos sempre que posso. Passámos momentos maravilhosos em África, no Brasil, EUA,China e Japão, e vários locais na Europa, do norte ao sul. Sou agora a avóextremosa de dois bebés maravilhosos. Suspeito que tanto o meu filho e filhacombinaram ter filhos ao mesmo tempo. Entusiasma‑me muito ter dois netos na família.

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