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O Império do Meio contra-ataca

"Não se queixem os "ocidentais” da ilusão criada, enredados no turbilhão do crescimento empolado de uma economia global assente em ativos tóxicos ilusórios da realidade, bem se podendo dizer, que o Império do Meio, destroçado e ofendido no século XIX, contra-ataca"

O Império do Meio contra-ataca
Reza a história que as autoridades chinesas, em 1557, autorizaram os portugueses a estabeleceram-se em Macau para que estes combatessem os piratas que pilhavam vastas áreas da região de Cantão, principalmente no Delta do Rio das Pérolas, permitindo aos portugueses o acesso condicionado ao mercado de uma economia até então fechada ao exterior, situação que ao longo dos séculos veio a despertar o "apetite” de outros investidores de outras nacionalidades; principalmente britânicos entretanto instalados na India; neste mercado sedutor de milhões de consumidores.

Contudo não se mostrou fácil aos britânicos acederem à China − ou ao Império do Meio como também se auto designava a China por se considerar no centro do universo − já que em 1793 o enviado britânico a Pequim Lorde McCartney, portador de amostras de produtos e artefactos industriais britânicos destinados a serem exportados para a China, ao recusar fazer a tradicional vénia ao imperador − contrariamente aos portugueses, que aceitavam tocar com a cabeça no chão em prol dos interesses nacionais e do comércio − foi expulso, sendo portador da seguinte mensagem do imperador Qianlong ao rei George III da Grã-Bretanha: "Como o seu embaixador pode ver por ele mesmo, nós temos de tudo. Não dou valor a objetos estranhos ou engenhosos e não temos uso para as manufaturas do seu país."  

Ao não conseguirem ampliar o comércio com os chineses através da venda de "objetos estranhos ou engenhosos e sem uso” de produção britânica, os ingleses adotaram uma estratégia agressiva de "marketing” introduzindo no mercado a venda ilegal à população chinesa do ópio cultivado na India, a troco de ouro e prata, e de mercadorias chinesas tais como a seda, chá e porcelana, então muito apreciados e com grande procura na Europa. 

As consequências do consumo do ópio tornaram-se devastadoras para a sanidade dos consumidores e finanças chinesas em resultado da caudalosa saída de metal sonante da China para compra das "importações” do ópio, ameaçando a estabilidade social e financeira do país, atingindo a própria coesão das forças de segurança e de defesa do Estado dado o consumo generalizado entre soldados e oficiais.

Para fazer face a esta situação, o governo de Pequim proibiu o tráfico do ópio1, proibição que não seria acatada pelos ingleses, que tendo obtido desde 1830 a exclusividade das operações comerciais do porto de Cantão facilmente faziam circular os carregamentos de ópio proveniente da India que chegaram a representar metade das exportações britânicas para a China. 

Já os portugueses de Macau não se encontrando em condições de defender os chineses dos modernos piratas do século XIX, as autoridades chinesas, "muito abusivamente” recorreram à destruição de um carregamento de ópio inglês em Cantão, levando o governo de Sua Majestade a considerar-se afrontado nos seus interesses comerciais por esta iniciativa unilateral, decidindo "intervir no mercado”, dando ordem à esquadra britânica para afundar boa parte dos obsoletos juncos à vela da marinha de guerra chinesa, sitiando Cantão, bombardeando Nanquim e bloqueando o acesso terrestre a Pequim, no que ficou conhecido pela 1ª Guerra do Ópio, de que saíram vencedores os ingleses com a derrota chinesa em 1842, sendo assinado o Tratado de Nanquim, que obrigava a China a abrir cinco portos ao comércio de ópio britânico, pagar uma pesada indemnização de guerra e entregar Hong Kong aos britânicos, ficando como garantia do direito de comércio de ópio assim obtido, a permanência de um navio de guerra britânico ancorado em cada um desses portos. 

Anos mais tarde, em 1857, os Britânicos, desta feita aliados a outras potências ocidentais, decidiram de novo "intervir no mercado”, desta feita indignados com a revista feita pelas autoridades chinesas ao navio de pavilhão britânico Arrow. Face à recusa do imperador chinês em aceitar um novo tratado "de abertura do mercado”; que passava pelo acesso a onze novos portos chineses ao comércio de ópio com o Ocidente e garantia de liberdade de movimento aos empreendedores traficantes europeus "muito legitimamente” ansiosos em melhorar os canais de distribuição; Pequim foi ocupada, vindo a ser aceites todas as exigências ocidentais através da Convenção de Pequim de 1860, tendo a China aceite criar um Ministério dos Negócios Estrangeiros a fim de garantir um "diálogo civilizado” com as delegações ocidentais instaladas na capital, de forma a monitorizarem a economia chinesa assegurando a "justa remuneração” dos "legítimos interesses” dos investimentos estrangeiros ligados ao mercado do ópio, no que constituiu o desfecho da 2ª guerra do ópio, a par disso renunciando as autoridades chinesas ao uso do termo de "bárbaro", usado nos documentos chineses para denominar os ocidentais. Não se acredite que a milenar China tenha falta de memória e que esqueça as lições e as ofensas do passado2.  

A moderna China de Partido Único, dispondo de força bastante que lhe permite "dispensar” vasos de guerra estrangeiros nos seus portos para monitorizarem os novos fluxos comerciais e financeiros resultantes da globalização, enveredou por decisão própria por dois sistemas: um de "economia de mercado”, reconhecendo a necessidade temporária de importar "objetos estranhos ou engenhosos " ocidentais para consumo interno reconhecendo-lhes o uso, o que gerou uma enorme e cega apetência dos ocidentais pelo "mercado emergente” chinês; e outro de "economia planificada” para os replicar a baixos custos de mão-de-obra sem grandes preocupações de qualidade, e exportar as replicas como quinquilharias de maior ou menor utilidade, através de uma rede de "postos de venda”, bem conhecidas por toda a gente como as "Lojas do Chinês”, disseminadas em cada canto das cidades e vilas europeias e do mundo.

Este plano bem urdido de captação de divisas tem permitido ao estado chinês acumular enormes reservas monetárias e tornar-se uma "praça financeira de referência” geradora de movimentos especulativos e de alavancagem em aquisições de ativos estrangeiros com apoio direto ou indireto do estado chinês, replicando em maior escala os modelos de outras praças financeiras, resultando na acumulação de um enorme monte de dívida contraída em pródigos gastos em infraestruturas, alguns de duvidoso interesse e valor, como forma de estímulo a uma economia que se queria de referência, e mantendo artificialmente a viabilidade de empresas "zombi” financiadas pelo estado, "afogadas” em ativos tóxicos, e por definição "grandes demais para falirem”.

Se no século XIX foram os ocidentais que pretenderam impor aos chineses um modelo de "economia aberta" assente no livre comércio de ópio criador de grandes ilusões no "mercado” findadas sempre em duras ressacas; desta feita; sem que os chineses tivessem necessidade de impor o que quer que fosse pois encontraram as portas abertas na mira da contrapartida da quimérica conquista do mercado chinês; não se queixem pois os "ocidentais” da ilusão criada e da ressaca que os espera enredados no turbilhão do crescimento empolado de uma economia global grandemente assente em ativos tóxicos ilusórios da realidade, bem se podendo dizer, que o Império do Meio, destroçado e ofendido no século XIX, contra-ataca.

Por Pedro Castro Caldas, consultor de gestão de risco


1 Em 1839, um ministro chinês reportava ao Imperador a situação da seguinte forma: ”Majestade, o preço da prata está caindo por causa do pagamento da droga. Em breve, vosso império estará falido. Quanto tempo ainda vamos tolerar este jogo com o diabo? Logo não teremos mais moeda para pagar armas e munição. Pior ainda, não haverá soldados capazes de manejar uma arma porque estarão todos viciados.”

2  Os portugueses, que obtiveram Macau no século XVI a troco de serviços prestados, sabem bem disso, ao constatarem que os chineses requereram aos britânicos a devolução de Hong Kong  em 1997, obtido no século XIX através da força e da humilhação de 1842 , e só  dois anos depois requereram  aos portugueses a devolução de Macau.





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