Global Risk Perspectives - Monthly insights on geopolitics, trade & climate

Voltar aos artigos
Bernardo Pires de Lima
1
28.07.2022

Clima, energia, recursos e redistribuição do poder

Vale a pena colocar tudo em perspetiva. No século I, a Ásia representava 76% do PIB global então conhecido, em contraste com os 10% concentrados na Europa ocidental. Mil anos depois, este valor baixou para 8,7%, decréscimo que se abateu na Ásia apenas até aos 70%. Tudo mudou a partir da Revolução Industrial. Em 1820, a Europa ocidental valia já 23% do PIB mundial, enquanto a queda asiática se acentuava até aos 59%. Neste contexto regional, só a China representava 32% da fatia mundial. A dinâmica industrial, contudo, não foi exclusiva da Europa ocidental e teve nos Estados Unidos da América, no Canadá, na Austrália e na Nova Zelândia pólos económicos regionais de envergadura. Em 1820, os quatro valiam 2% do PIB mundial, mas em 1998 representavam já 25%. Se juntarmos os 20% da quota europeia à equação, concluímos que, no final do milénio, este Ocidente liderado pelos EUA detinha quase metade da riqueza produzida no mundo, em contraste com os 37% concentrados na Ásia. 

Podemos por isto dizer que a emergência do Ocidente teve uma dinâmica relativamente rápida nos últimos duzentos anos, e que na maior parte da história de que há registo, a Ásia, com a maior densidade populacional mundial, deteve a maior fatia da economia global. Perante este cenário, não devemos ficar surpreendidos com a proliferação de estudos nos últimos anos, quase todos convergentes nas previsões sobre a consolidação de um renascimento asiático: em 2050, três das quatro maiores economias mundiais serão dessa região. A ordem da hierarquia? China, EUA, Índia e Japão. 


 
Por grupos geopolíticos, podemos também tirar uma fotografia a esta dinâmica. Vejamos, por exemplo, o caso dos países do G7 (Canadá, França, Alemanha, Itália, Japão, Reino Unido e EUA), que representam hoje cerca de 40% do PIB mundial, ao invés dos 60% em 1975. Já o peso económico dos sete principais países emergentes (Brasil, China, Índia, Indonésia, México, Rússia, Turquia) corresponde hoje a cerca de dois terços do G7. É provável que esta relação se inverta até 2050. A China deverá tornar-se a maior economia antes do final da presente década, podendo a Índia ultrapassar a UE nos próximos 20 anos. Porém, o crescimento do PIB nos países emergentes e em desenvolvimento pode não se traduzir necessariamente numa melhor qualidade de vida dos seus cidadãos, o que recentra o debate nalguns desafios estruturais destas economias: o aumento das desigualdades, a concentração de poder, a cleptocracia e a desvalorização das normas ambientais ou laborais, serão certamente motivos para choques internos em sociedades que precisarão de ritmos acelerados de crescimento para competir entre si e projetar os seus modelos de desenvolvimento para o resto do mundo.  
 
Esta competição económica implicará, como sempre, uma forte corrida aos recursos naturais, muitos deles por mapear e extrair, sejam hidrocarbonetos no Mediterrâneo Oriental ou no Ártico, sejam minérios em África ou na América Latina, cada vez mais uma parte absolutamente vital das cadeias de valor tecnológico. Neste sentido, vale a pena olharmos para o eixo entre a competição económica, reequilíbrios de poder, extração de recursos e alterações climáticas, para percebermos os riscos que se poderão agravar nos próximos anos e os efeitos que provocarão.  

Dizem vários estudos que, se a atual trajetória se mantiver, o aquecimento global deverá ultrapassar 1,5°C nas próximas duas décadas e aproximar-se dos 2°C até 2050. O primeiro ano em que a temperatura mundial atinja este nível poderá ocorrer já nos próximos cinco anos. Cada 0,5°C adicionais aumentarão a intensidade e a frequência de fenómenos meteorológicos extremos, secas, incêndios florestais ou inundações, incluindo em locais onde estas situações eram pouco comuns no passado. O aumento das temperaturas também significa mais fusão do gelo e níveis mais elevados do mar. Estas alterações está já a ter consequências significativas para o ambiente, para a saúde, para a segurança alimentar e da água, bem como para a segurança das pessoas e para o desenvolvimento humano. Estima-se que, ao longo da última década, os fenómenos meteorológicos tenham desencadeado a deslocação de cerca de 23 milhões de pessoas em média, por ano, com tendência para o agravamento das pressões migratórias. Até 2050, mais de 200 milhões de pessoas poderão necessitar de ajuda humanitária todos os anos, em parte devido a catástrofes relacionadas com o clima.  

Neste contexto, a existência de um cada vez maior apetite por recursos (energia, alimentos e matérias-primas) está já a exercer uma pressão extrema sobre o planeta, representando metade das emissões de gases com efeito de estufa, mais de 90% da perda de biodiversidade e do stress sobre os recursos hídricos. Sem uma intensificação da economia circular ou de uma melhoria na sustentabilidade dos recursos, dificilmente se atingirá as metas da neutralidade climática até 2050. De acordo com um estudo recente da Comissão Europeia, a necessidade de matériasprimas críticas para tecnologias e setores estratégicos aumentará acentuadamente nos horizontes de 2030 e 2050, com base nos dados atualmente disponíveis. Por exemplo, em 2030, a União Europeia prevê necessitar de 18 vezes mais lítio e 5 vezes mais cobalto do que atualmente, com vista ao incremento industrial das baterias de veículos elétricos e o armazenamento de energia. Já em 2050, precisará de quase 60 vezes mais lítio e 15 vezes mais cobalto, o que pressupõe uma competição acentuada entre grandes economias extrativas no decorrer das próximas décadas, e não o seu recuo. Para termos uma noção do que estamos a falar, a UE extrai e produz hoje menos de 5% das matérias-primas críticas em todo o mundo, ao passo que a indústria da UE é responsável por cerca de 20% do consumo mundial dessas matérias. Por exemplo, a China fornece 98% do aprovisionamento da UE de elementos de terras raras, a Turquia 98% de borato e a África do Sul 71 % das necessidades de platina. A procura de terras raras utilizadas em ímanes permanentes (por exemplo, para veículos elétricos, tecnologias digitais ou geradores eólicos) pode aumentar dez vezes até 2050. Tal deve ser visto no contexto global da crescente procura de matérias-primas devido ao crescimento da população, à industrialização, à descarbonização dos transportes, dos sistemas energéticos e de outros setores industriais, ao aumento da procura por parte dos países em desenvolvimento, e às novas aplicações tecnológicas.  




Neste quadro, o Banco Mundial prevê̂ que a procura de metais e minerais vai aumentar rapidamente com a ambição climática. O exemplo mais significativo deste fenómeno são os acumuladores elétricos, em que o aumento da procura de metais relevantes (alumínio, cobalto, ferro, chumbo, lítio, manganês e níquel) tenderá a aumentar mais de 1000% até 2050, segundo um cenário de aumento da temperatura de 2°C, em comparação com um cenário de manutenção do statu quo. Por outras palavras, os países da UE dependem fundamentalmente das importações de matérias-primas críticas, as quais desempenham um papel crucial em muitas indústrias europeias estruturais, mas também do futuro, como a indústria automóvel, a siderurgia, a aviação, as tecnologias da informação, a saúde e o setor das energias renováveis.  

Numa dinâmica acelerada de competição por poder e recursos, quando não por território e ideologias políticas, vai ser fundamental que os países da União Europeia venham a combater a dependência excessiva de países terceiros no aprovisionamento de matérias-primas críticas, além de aumentarem a resiliência das cadeias de abastecimento essenciais, a fim de garantir de forma fiável a segurança do aprovisionamento, a transição energética e a transição para uma economia digital.  

O que isto implicará, num quadro de escassez de algumas das matérias-primas críticas no território europeu, é as democracias terem de acelerar a inovação científica com os recursos que têm disponíveis, cumprindo as metas climáticas, para não se submeterem em excesso a dependências de terceiros, e com isso contribuírem para o ciclo de falta de distribuição da riqueza entre as populações locais, má governação e desrespeito pelos direitos humanos,  depauperando ecossistemas locais e contribuindo para a insustentabilidade do clima. Se conseguirem conciliar o rumo mais autónomo com um outro de alguma interdependência, sem cair nestes vícios crónicos, mas até os revertendo, talvez não sejam décadas totalmente perdidas as que temos pela frente. A certeza, porém, parece aguçar uma certa propensão para o disparate: anos de competição desenfreada por recursos e poder entre cada vez mais pólos com capacidade de decisão própria, num clima menos favorável à diplomacia e à gestão partilhada e sensata do planeta.  





Disclaimer: Bernardo Pires de Lima, investigador do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa.
Os conteúdos e opiniões expressos neste texto são da exclusiva responsabilidade do seu autor, nunca vinculando ou responsabilizando instituições às quais esteja associado.

Bernardo Pires de Lima nasceu em Lisboa em 1979. É investigador no Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa, analista de política internacional na RTP e Antena 1, consultor político do Presidente da República, presidente do Conselho de Curadores da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, e ensaísta, tendo publicado, entre outros, A Síria em Pedaços, Putinlândia, Portugal e o Atlântico, O Lado B da Europa e Portugal na Era dos Homens Fortes. Foi visiting fellow no Center for Transatlantic Relations da Universidade Johns Hopkins, em Washington DC, investigador associado no Instituto da Defesa Nacional, colunista do Diário de Notícias e analista na TVI. Entre 2017 e 2020 liderou a área de risco político e foresight na FIRMA, uma consultora de investimentos exclusivamente portuguesa. Viveu em Itália, na Alemanha e nos EUA, mas é a Portugal que volta sempre. 
Descubra o mundo MDS