Global Risk Perspectives - Monthly insights on geopolitics, trade & climate

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Bernardo Pires de Lima
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30.06.2022

Sete grandes efeitos da competição entre as grandes potências

O que tentarei trazer-vos é uma combinação do que tenho feito durante quase 20 anos: interpretar factos, analisar tendências, questionar narrativas, apontar riscos e ajudar decisores. Portanto, a minha sugestão hoje é que contemplemos os sete grandes efeitos da competição entre as grandes potências, um quadro que, em minha opinião, começou a definir os anos subsequentes a 2008 e tem tremenda precisão no contexto atual. Creio também que informará as relações internacionais nos anos vindouros, com grande impacto no clima de negócios e hábitos dos consumidores.  
 

Chamei ao primeiro efeito a guerra como ferramenta nas disputas estratégicas. Não porque o uso de força tenha estado ausente da política internacional (de facto, define-a há séculos) mas porque agora as grandes potências demonstraram vontade de se confrontarem fazendo uso das suas capacidades militares. A invasão da Ucrânia por parte da Rússia coloca um desafio direto aos países da NATO como nunca antes houve e a linha que nos separa do confronto mútuo nunca foi tão ténue. Portanto, transitamos de um período pós-Guerra Fria de apaziguamento mútuo entre grandes potências para uma nova fase onde o conflito militar é uma das opções em consideração. Agora, imaginemos que era necessário lidar simultaneamente com uma guerra na Ucrânia e outra em Taiwan, com envolvimento direto da Rússia, China e Estados Unidos. Isto muda tudo, desde a estabilidade da ordem internacional à cooperação nas soluções globais, dos negócios às certezas da esfera económica. 



O segundo efeito é a guerra eletrónica como meio de intervenção externa. Desde os atores não-estatais aos que têm vínculo com algum estado, o facto é que os ciber-ataques aumentaram nos últimos anos, causando prejuízo a empresas, bancos e outras instituições, mas também influenciando resultados eleitorais e a atmosfera das democracias. Em tempos de guerra, confinamentos e desinformação, a ciber-segurança nunca foi tão relevante para o nosso futuro coletivo. E quando digo coletivo, refiro-me aos setores público e privado. Mas, se a regulamentação vive da necessidade de cooperação entre estados, também requer a participação transversal de grandes empresas tecnológicas. E é esse o desafio à nossa frente, cumulado à falta de participação entre as partes interessadas e afetadas, o que eleva o risco global.  
 

O terceiro efeito é o choque entre democracias e autocracias. Desde 2020, e pela primeira vez no séc. XXI, que o mundo tem mais regimes autocráticos do que democráticos. Deste facto derivam pelo menos três consequências: 1) Estes dois sistemas paralelos tendem a reduzir o nível de interacção entre os dois tipos de regime; 2) As autocracias têm agora novos argumentos para contestar os méritos das democracias e das economias de mercado; 3) As democracias abrigam no seu seio movimentos e partidos nacionalistas de relevo que querem reverter liberdades, o pluralismo e a cooperação internacional. Estas são três consequências que fragilizam o contexto em que os negócios vigorosos operam, criam ansiedade nas sociedades abertas, incerteza entre os consumidores e fortes divisões entre as pessoas. 




O quarto efeito prende-se com as sanções como parte de um processo de dissociação entre economias industriais. Todos estamos cientes do facto histórico de que as sanções não resolvem conflitos sozinhas. Sabemos igualmente que a fase atual das sanções impostas à Rússia ainda não alcançou o máximo âmbito possível. Embora possamos concluir duas coisas: 1) o Ocidente — estados e organizações — tem reconhecido celeremente que deve ser infligido o maior estrago a um grande poder como a Rússia até esta entrar em incumprimento face à dívida externa; 2) o Ocidente está a assumir os riscos colaterais de cortar os laços económicos, energéticos e políticos com a Rússia. Este movimento autonomizador do lado europeu representa formalmente o fim de uma era em que a interdependência económica tem sido garantia de respeito mútuo e colaboração política entre as nações. Mas inaugura também uma nova fase em que novos e grandes investimentos serão colocados (na energia, infraestrutura, defesa, tecnologia, indústria), criando novas oportunidades também para o setor segurador.  


O quinto efeito define uma ameaça existencial às organizações multilaterais. Estas estão permanentemente sob teste de resistência. Recentemente testemunhámos o nível de animosidade contra a Organização Mundial de Saúde durante a pandemia; e também o nível de cristalização do Conselho de Segurança das Nações Unidas durante a guerra na Ucrânia. Por sua vez, a NATO e a União Europeia mostraram níveis interessantes e surpreendentes de coesão, respondendo bastante bem aos desafios colocados pela Rússia. Veremos também a criação de um acordo comercial multilateral no sudeste asiático, liderado pelos Estados Unidos, nos próximos meses, para contestar a influência da China e as perturbações económicas que esta tem imposto ao mundo. Portanto, algumas organizações lidam melhor do que outras com a concorrência entre os grandes poderes. Mas não nos esqueçamos: se o unilateralismo prevalecer, derrotando o multilateralismo, o ambiente de negócios sofrerá com isso.  

 
O sexto efeito são os abalos de longo prazo no comércio, cadeias de fornecimento, energia e segurança alimentar. Todos estamos familiarizados com os tremendos impactos sobre a economia global, a inflação, a transição energética, a crise dos semicondutores, o acesso aos bens de consumo, e os processos normais das empresas. Estes efeitos perturbadores associaram a pandemia à guerra num longo percurso de transformações globais que obrigaram toda a gente a adaptar-se: cidadãos, empresas privadas, organizações e instituições. Esta adaptação acarreta custos tremendos para todos e o cenário não melhorará no futuro previsível. Podemos partir do princípio que 1) não normalizaremos a economia global até a pandemia estar sob controlo e os confinamentos rigorosos acabarem, especialmente na China; 2) não controlaremos os efeitos sobre a energia e segurança alimentar, nem a inflação gerada, até a guerra na Ucrânia ter acabado e se chegar a algum tipo de entendimento político. Estes dois passos ainda são de difícil consecução a curto prazo. 



Finalmente, o sétimo efeito: extração de recursos naturais numa corrida tecnológica. Embora 80% da área dos oceanos esteja por mapear e explorar, o que amplia as oportunidades de mineração, temos presenciado o crescimento da importância de novas descobertas de jazidas em terra como parte da cadeia de valor tecnológica. Falo de elementos de terras raras, lítio, cobalto, níquel, cobre, zinco, o que dá grandes vantagens a países como a China, Austrália, Estados Unidos, Nigéria, Chile, Argentina ou Indonésia. As matérias-primas de importância crítica já se encontram no cerne da economia global, com impactos ambientais; e aceleram o processo de extração para alimentar a concorrência tecnológica, uma dinâmica que também tem dado forma ao equilíbrio mundial do poder. A evolução destas circunstâncias definirá o nível de regulamento necessário, novos acordos climáticos e talvez novas abordagens do setor privado.  





Disclaimer: Bernardo Pires de Lima, investigador do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa.
Os conteúdos e opiniões expressos neste texto são da exclusiva responsabilidade do seu autor, nunca vinculando ou responsabilizando instituições às quais esteja associado.

Bernardo Pires de Lima nasceu em Lisboa em 1979. É investigador no Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa, analista de política internacional na RTP e Antena 1, consultor político do Presidente da República, presidente do Conselho de Curadores da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, e ensaísta, tendo publicado, entre outros, A Síria em Pedaços, Putinlândia, Portugal e o Atlântico, O Lado B da Europa e Portugal na Era dos Homens Fortes. Foi visiting fellow no Center for Transatlantic Relations da Universidade Johns Hopkins, em Washington DC, investigador associado no Instituto da Defesa Nacional, colunista do Diário de Notícias e analista na TVI. Entre 2017 e 2020 liderou a área de risco político e foresight na FIRMA, uma consultora de investimentos exclusivamente portuguesa. Viveu em Itália, na Alemanha e nos EUA, mas é a Portugal que volta sempre. 
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